Festival de Curitiba 2013
Com movimentos lentos e cuidadosos, a 22ª edição
do Festival de Curitiba se mexeu. Pouco e com algumas reticências, a curadoria
da mostra procurou se afastar da série de espetáculos do Rio e de São Paulo dos
anos anteriores e levar a Curitiba montagens que trazem alguma proposta para
além do encenador do momento, do ator em evidência na televisão e do gênero da vez.
Não que essas linhas curatoriais tenham sido abandonadas, já que a maioria
dos espetáculos da programação vem
do eixo, e seria muito difícil escapar desse quadro da produção teatral
brasileira. Os nomes sonantes do vídeo continuam na vitrine curitibana, ao
mesmo tempo em que alguns gêneros se mantenham como balizadores de uma cena
mais identificada com o entretenimento. Mas são detalhes para festival que
incluiu este ano propostas instigantes, até patrocinou algumas delas, e que surpreendeu
na mostra paralela Fringe.
Formalismo artesanal que se cristaliza nas referências |
Haikai – Em Curitiba, Roberto Alvim, diretor carioca
radicado em São Paulo, procura, ao ritmo da estrutura da escrita poética
japonesa, transferir à cena o ruído da palavra que se compõe pelo formalismo. É
de dentro do formato que Alvim estabelece o arco da teatralidade, do desenho do
traço que economiza a expressão e do pensamento sintético que elimina a busca
do sentido. Três atores, aparentemente desprovidos de personagens, em falas alternadas
cujas vozes perseguem a tensão, mais do que a atribuição de qualquer valor
narrativo, provocam em 25 minutos um estranhamento na recepção da platéia. Os
códigos de apreensão, à primeira vista, parecem subvertidos. Na falta de
ordenação de conhecimento ao que foi proposto, a linguagem se transforma em
sonoridade (há uma cena em que se fala língua intrigante, que aparentemente,
soa como grego), o movimento em estática e a projeção em incomunicabilidade. O
arcabouço de Haikai, no entanto,
cristaliza mais do que avança e retém mais do que pulsa. Ao se referir ao
aforismo japonês, o diretor não reproduz a essência da forma, descaracterizando
o textual sem integrá-lo ao cênico. Por outro lado, o espectador se defronta
com a construção em escala artesanal de imagens familiares a encenadores contemporâneos.
Lá estão os neons frios e vermelhos, de Bob Wilson, e a iluminação a serviço de
peças curtas de Beckett, de Gerald Thomas. Resta a palavra de Roberto Alvim
reproduzida no programa como carta de princípios: “Não se trata de
entendimento. Trata-se de produção e experimentação de intensidades. É preciso
furar a dinâmica neurótico-histérica do sujeito/ dos afetos.. Inconsciente e
pulsão. Chega de verdade.”
Recusa – A Cia. Balagan de São Paulo, com direção de Maria
Thaís e dramaturgia de Luiz Alberto de Abreu, fundamenta a cena através de
mitos da cultura indígena, conotados por notícias recentes. Saga de dupla de
índios, de padre e fazendeiro que são de devorados e devoram, de Macunaíma e
seu irmão, ritualizada em canto, dança e línguas ancestrais em contrapontos de
histórias, corpos e vozes. Quase registro etnográfico, a dramaturgia confunde planos
narrativos, oscilando entre a representação de etnias e suas linguagens
derivativas, e fatos, ideologia e crítica. Recusa
é construído dessas ressonâncias, nas quais estão presentes algum orientalismo, vaga memória de outras
encenadores e intérpretes e volume de pesquisa que se reflete no rigor das
atuações. Os duplos que se transmutam em homens, animais e natureza e se
interpenetram em símbolos impulsionadores, desaguam em fluxo narrativo que captura sons e movimentos
compondo, ao lado da cenografia de Márcio Medina e dos atores Antônio Salvador e Eduardo Okamoto, esta
instalação performática fracionadamente
contundente.
Hamlet
– Do Rio Grande do Norte, o
Clowns de Shakespeare apresentou a tragédia de Shakespeare com direção do
paulista Marcio Aurélio, perdida entre os extremos da nomenclatura que define o
grupo. Ao contrário da importação do
espetáculo anterior, quando levaram a Natal o diretor Gabriel Villela para
encenar Ricardo III, em bem sucedida
montagem, desta vez, Aurélio, os Clowns e o trágico não se entenderam. E não
apenas pela inadequação de estilos, mas de expectativas. Marcio Aurélio
enquadrou-a na perspectiva de desmontar e redimensionar as máscaras da representação,
enquanto o grupo tenta se equilibrar no malabarismo popular de seu uso. A
tradução, verbal e cênica, se desencontra na encruzilhada em que a tendência a
facilitar, criticamente, o que não se mostra possível de realizar, torna
híbrido e expõe as fraturas do que se pretendia driblar. A adaptação do texto
assinada pelo diretor, que entre outras intervenções, criou um prólogo que,
supostamente, daria o tom da encenação, mas que se restringe a condensar a
trama, fragmentando o núcleo narrativo e margeando a superficialidade. Nada faz
supor que tenha existido alguma idéia em torno da qual Hamlet não se mostrasse
alguém tão desprovido de quaisquer dos sentimentos que o impulsiona na direção
de saber quem é. As suas investidas para revelar as vilanias da vida se
camuflam em movimentos e gestos vazios e na lembrança de que, ainda que de
Shakespeare, os atores se denominam clowns.
Fringe
– Dos estados do Brasil com
maior representatividade teatral, mais de 300 espetáculos se oferecem durante
os dez dias do festival num balcão de exposição que está distante de sensibilizar
plateias. É comum assistir a espetáculos com cinco pessoas, em melancólica
evidência de desinteresse. Nos 16 anos do Fringe esse quadro pouco mudou, mas
os organizadores procuram ordenar a volumosa oferta com mostras temáticas. Este
ano, estão disponíveis, entre outras, as mostras baiana e mineira, o coletivo
de pequenos conteúdos e a de teatro para ver de perto. Na de novos repertórios
se destacou Em Breve, nos Cinemas,
produção da companhia curitibana Teatro de Breque, que encena fragmentos da
vida e obra do autor americano David Foster Wallace, que se suicidou em 2008. A
montagem interpõem narrativas, reais e ficcionais, linguagens, cinematográfica
e teatral, e conhecimentos, filosóficos e matemáticos, com ironia e algum
niilismo. Com direção de Nina Rosa Sá e cenário de Fernando Marés, Em Breve, nos Cinemas é a maior surpresa
do Fringe.
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