quinta-feira, 29 de novembro de 2012

42ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Jacinta
Prazeres e dores do teatro vividos como farsa
A intenção, ao que parece, de Newton Moreno ao escrever Jacinta, em cartaz no Teatro Poeira, foi de através de uma atriz portuguesa do século XVI, absolutamente desprovida de talento, homenagear o teatro. Na contramão da posse dos instrumentos que tornam possível a verdadeira realização da arte, o autor apresenta por meio da atriz medíocre as dificuldades e as limitações do exercício da cena. Utilizando o primeiro século da nossa colonização como cenário, o efeito metafórico da reverência se amplia como farsa. Degredada para o Brasil, depois de provocar a morte da rainha portuguesa após ter assistido a sua interpretação de poema de Gil Vicente, provocando a amputação de uma das mãos do escritor para que não mais pudesse escrever, reproduz por aqui a trilha de desacertos que a obrigou a abandonar a sua terra. Tangida de Portugal e sempre impulsionada pela fome, Jacinta percorre o Brasil em saga mambembe à procura de mitigar a sobrevivência e alimentar a vaidade. O tempo que abriga tanta insistência e seu rastro de enganos é o mesmo que Moreno e os parceiros Aderbal Freire-Filho, também diretor, e Branco Mello, responsável pela coautoria da música, pretendem aproximar da atividade teatral dos nossos dias. Jacinta como elo entre as épocas não será o melhor símbolo para figurar os atropelos da vida dos saltimbancos contemporâneos, já que sua canastrice demonstra apenas incapacidade para o palco. Nem mesmo a redenção final, a exime das trapalhadas por conta incompetência, o que deixa entrever que o trio de autores considera o teatro generoso espaço de acolhimento para os que persistem. Como a trupe de atores que encena a falta de talento, recorrendo a formas de representação que evocam ibéricas manifestações do século de ouro. Ao recorrer ao português Gil Vicente, citar o espanhol Lope de Vega e incorporar Shakespeare, a ciranda de citações empresta ar erudito à trama, referendando o invólucro histórico da teatralidade. Mas esse arranjo não se mostra suficiente para ordenar estilisticamente a montagem, que percorre tantas indicações sem propor rumos, a não ser os que apontam para atalhos. Torná-la um musical é mais dos elementos que se sobrepõe às várias camadas narrativas. Com a exaltação ao teatro, seus prazeres, agruras e personagens, desvia-se da bem sacada ideia da “pior atriz mundo”, interessante mote para comédia de situações na qual o teatro poderia servir de meio de acompanhar o desastre das tentativas e não a glorificação dos fins. Aderbal Freire-Filho inflou a cena, tornando-a excessiva na deferência e escassa no dimensionamento. A montagem se derrama em níveis narrativos, ora farsescas, ora musicais, afogando-se na ânsia de expor múltiplas referências, tempos e gêneros. O elenco mergulha, decisivamente, neste mar de muitas ondas com inegável adesão. Andrea Beltrão, com discutível sotaque luso e convincente voz para o canto, e os demais atores – Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isio Ghelman e Rodrigo França – celebram com bom humor a arte da representação, que, a rigor, é o que o espetáculo almeja ser.        

Crítica/ Depois da Queda
Zonas sombrias de um intelectual pronto para o grito
Estreada em Nova Iorque em 1964, Depois da Queda é um mergulho de Arthur Miller na sua subjetividade, balanço sobre as mulheres de sua vida (a mãe e suas duas esposas), sequelas das feridas nunca fechadas provocadas pelo macarthismo e exposição intelectual de culpabilidade. O dramaturgo Miller se transforma no advogado Quentin, que se desencontram apenas na mudança dos nomes, já que no texto se revelam semelhantes pelas vivências reproduzidas na autobiografia em livro do autor de As Feiticeiras de Salém. Mas a peça mantém o caráter ficcional, ajustado ao realismo psicológico da dramaturgia de Miller. Depois da Queda transcorre no plano da consciência, adotando forma memorialista e com citações a questões políticas filtradas pelos conflitos interiores. Quase como um depoimento e acerto de contas consigo mesmo, Miller disseca a culpa como algo que carrega como um peso que não se dissolve, muito menos se atenua. Os abismos que constrói no relacionamento com as mulheres e no conhecimento como medo o impulsiona para a certeza de ser um traidor, a quem não confere qualquer trégua emocional. O texto investiga essas interioridades, percorre zonas sombrias como um embate pela revelação da verdade, de saber-se quem é e por onde se andou para chegar ao desvendamento das dúvidas existenciais. Extremamente bem arquitetada, a peça é narrada a partir da fragmentação dos sentimentos, da exibição daquilo que se quer compreender e dos diálogos com o inconsciente. A encenação de tais sensibilidades, projetadas em quadro realista e cena psicológica, se acondiciona em plano intermediário entre esses extremos. Encontrar a linha que determine a sua tradução em palco é processo rigoroso de abarcar uma voz pronta para o grito. Felipe Vidal procurou capturar o movimento subjetivo com traços rascunhados. A direção desenha contornos atritantes, seguindo a compartimentação da narrativa, buscando desconstrução dramática nas interpretações e equalização temporal na música, na montagem uniformizada e sem variantes de atmosfera e oscilações de intensidade. As questões abordadas no primeiro ato são levadas sem muito adensamento, enquanto as do segundo são lançadas como drama psicológico. As discrepâncias estilísticas não prejudicam a qualidade do texto, apenas o faz menos rico. O elenco, por geração e técnica, se mostra retraído. Lucas Gouvêa, que interpreta Quentin e tem a responsabilidade de conduzir a narrativa, estabelece linha única e equidistante, com poucas, e quase sempre despropositadas, elevações de tom. Gouvêa confere frágil densidade ao personagem, não só pela opção interpretativa, como pela sua juventude, que se confunde com insuficiente carga emocional para transmitir a força das vivências do personagem. Já Simone Spoladore utiliza recursos corporais e interpretativos bastante mais depurados para ultrapassar os limites do mimetismo e dos atributos óbvios no desempenho da Maggie. A atuação da atriz se sobressai no elenco, no qual José Karini tem participação pequena, mas destacada, e em que os demais – Paula Tolentino, Gabriela Carneiro da Cunha, Thais Tedesco, Luciano Moreira, Paulo Giardini, Talita Fontes e Leandro Daniel Colombo – contribuem com participações bem orquestradas.      

                                                 macksenr@gmail.com