Faces do Trágico
A Oresteia,
como a chamou Ésquilo, é formada por trilogia em que cada uma das partes
conta sobre a poética cruel da existência e dos elementos formadores do destino
humano, marcado por violências várias e determinismos insondáveis. O fatalismo
com que forças conduzem os atos e que escapam aos domínios faz com que a vida
seja governada por desígnios que restringem a plenitude da natureza humana.
A sequência de assassinatos da ascendência e descendência, os elos rompidos por
inevitáveis emanações daquilo que nos ultrapassa, é o que eterniza a nossa precariedade. Deuses, alma, inconsciente, o
trágico em Ésquilo se constrói e se perpetua na ritualização do diálogo entre essas
impermanências, no que há de silêncio do que resta da percepção do imperfeito. São
questões que estão subjacentes à ação trágica, que o autor grego projeta em
espiral narrativa e que a encenação contemporânea procura traduzir de modo a
dimensionar esses aspectos, sem fragilizar a exterioridade da trama. A montagem de Malu Galli, em
cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, procurou compatibilizar a amplitude do
que a tragédia contém como fundamento, com o alcance com que a linguagem cênica
pode transmiti-la para a atualidade. A
diretora não restringe, tanto na adaptação, quanto na busca da plateia, a força
expressiva de texto, imprimi-lhe traços de uma linguagem teatral ajustada à
recepção do público de hoje. Galli recorre a tradução fluente de Alexandre
Costa e Patrick Pessoa e musicaliza o coro, revivendo milenares citações,
através de trilha original assinada por Romulo Fróes e Cacá Machado. Utiliza
microfones e expande a ação com
frontalidade para além do palco, solicitando ao espectador ser cúmplice. Na
intenção de envolver o trágico no contemporâneo, de criar espaços referenciais
comuns e de incorporar soluções cênicas de circulantes versões experimentais, a diretora construiu
montagem de extrema correção e de empenhada codificação. Impôs uma visão à Oréstia e foi coerente a ela, capaz de aproximá-la
aos nossos dias, sem qualquer distorcido ajustamento. O elenco – Daniela Forte,
Gisele Fróes, Julio Machado, Luciano Chirolli, Malu Galli e Otto Jr. – é demonstrativo
da bem integrada concepção do espetáculo. Assim como a direção, os intérpretes
se sintonizam com a tragicidade do teatro do nosso tempo.
Crítica/
Édipo Rei
Ao encontro da consciência em giros do destino |
Nada mais provocador do que constatar, a cada
encenação desta tragédia de Sófocles, que agora ganha mais uma versão em cartaz
no Espaço Sesc, do que a sua inesgotável permanência. O que lhe é destinado de
origem até o que lhe cabe de condenação, transforma Édipo em porta-voz da sua
própria consciência, num percurso de descobrir quem é, sem ter sabido durante toda
existência quem foi. Esse inexorável destino, anunciado pelos deuses e frustrado
na intenção humana de modificá-lo, se cumpre na sua integralidade, devolvendo a
Édipo a certeza de si mesmo, revelando a sua inteireza vital, definitivamente
trágica. Encenar Édipo é se debruçar
sobre as incontáveis possibilidades que a essencialidade desse texto propõe ao
longo do giro da roda dos ventos teatrais. Há pouco mais de 30 anos, o diretor
Flavio Rangel, ao dirigir Édipo,
mencionava as inúmeras formas de abordá-la, e que para tantas visões,
psicanalíticas, filosóficas ou históricas, há muitas outras, inexploradas. E
por que não, emprestar-lhe um cunho de história de mistério? Especulações à
parte, a montagem de Eduardo Wotzik procurou a fidelidade baseada em pesquisa e
estudo sobre a tragédia e a época, o que se reflete na arena de Copacabana de
modo límpido. Wotzik investiu na forma expositiva, privilegiando a evolução
narrativa, sem maior interferência de análises. O diretor pretendeu contar a
história, torná-la escorreita para atingir diretamente a platéia. A pretensão
foi alcançada, com o detalhamento da trama
e estendida a todos os aspectos da encenação. O figurino de Marcelo Olinto
investe na reprodução das roupas e adereços inspiradas em registro histórico,
enquanto que a cenografia de Bia Junqueira reveste a arena de pórticos e
cerâmica partida em evocação milenar. O visagismo de Uirandê Holanda
complementa a ambientação terrosa. As opções da direção caminham em sentido
paralelo ao trágico, acentuando a linha mais dramática como forma de apoiar maior
comunicabilidade e fluência cênica. Esse dramatismo
é mais evidente em algumas atuações, como a de Gustavo Gasparani (Édipo),
que modula a sua centralidade, recorrendo a ênfase corporal e vocal. Fabiana de
Mello e Souza, como Corifeu, demonstra presença exteriorizada, sem a força
exigida ao narrador. César Augusto cumpre com bem medida contracena as
intervenções de Creonte. Eliane Giardini marca de modo provocante (o figurino
assim a define) a sua Jocasta. Thiago Magalhães como o arauto antecipr o
desfecho da tragédia. Amir Haddad (Tirésias) Jitman Vibranovski (emissário) e
Rogério Fróes (pastor) se investem de portadores de terríveis revelações.
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