Crítica/
Esta Criança
Estilhaço de quadros com incisões profundas |
São dez cenas que tocam no relacionamento entre
pais e filhos. São dez frestas abertas sobre zonas de sombra dos sentimentos.
São dez relatos em torno da exposição de momentos de tensão. São dez
interioridades que se desvendam em rastilhos. São dez estilhaços de um quadro rasgado
por incisões profundas. É deste material que são compostos os textos de Joël
Pommerat em Esta Criança, em cartaz
no Teatro I do CCBB, de onde emergem situações que se apresentam como se pulsassem
no instante de sua eclosão. Não há qualquer resquício de naturalismo em
monólogos interiores exibidos como narrativas de vidas como elas são. Nada de
realismo psicológico, muito menos de dramatismo emocional. A virulência do que
se sente é demonstrada, não explicada por razões ou atenuadas por justificativas.
A intensidade tem a secura do registro e se evidencia pelos movimentos internos
que fazem com que reações sejam quase poses fotográficas de nitidez cruel. Por
mais explícitas que sugiram as cenas, o contorno é o da entrelinha, do que fica
pelo caminho dos diálogos. O diretor Marcio Abreu capturou esse entremeio, aquilo
que está entre o ruído e o silêncio, o desabafo e a impossibilidade, o medo e a
efusão, a proximidade e o afastamento, a repulsa e o amor. A montagem é
ascética, sem qualquer supérfluo, seca mas banhada de jorros de afetos,
insinuados por fendas de emoções. Há um rigor formal que sustenta a sutileza de
sentimentos que somente que se deixam entrever. Abreu trabalha neste fio de
tessitura invisível, na representação dessa área existencial em fricção. Nas
excelentes cenografia de Fernando Marés e iluminação de Nadja Naira se delimita
o teatro dos personagens. O cenário que corta o palco longitudinalmente,
avançando na plateia e deixando à mostra parte das coxias, ganha dimensão distorcida
à procura de desviar o eixo do olhar. Mais do que formalismo estético, tanto o
cenário quanto a iluminação se integram à cena como unidade indissolúvel da linguagem
do diretor. A montagem pulsa sobre esse rigor subterrâneo, que se deixa ver
apenas no modo como se revela na coesão do elenco e no acabamento geral da
cena. O quarteto de atores – Renata Sorrah, Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e
Edson Rocha – é a mais ampla projeção da qualidade e integridade criativa da
encenação. Se Renata Sorrah tem interpretação definitiva na sua carreira,
Giovana Soar, que também assina a ótima tradução, estabelece sutis contracenas.
Se Edson Rocha parece se voltar para atuação mais realista numa primeira
impressão, a desmente em seguida. E de Ranieri Gonzalez se pode medir a
extensão de sua enorme capacidade de intérprete.
macksenr@gmail.com