Crítica/ O Livro
de Itens do Paciente Estevão
Ser ou não ser um nome |
A cena se constrói a partir do romance do
americano Sam Lipsyt, em que um homem, herói anônimo do nosso tempo, é
diagnosticado com doença terminal para qual há o diagnóstico (a morte), mas da
qual ninguém ainda morreu, por que desconhecida. O mal que persegue esse homem,
chamado Estevão, ainda que seu nome não seja este e nem qualquer outro que se fique
sabendo, não aceita desaparecer sem razões justificáveis para a ausência de
cura. Vai à procura de curar-se por que meios que personagem de saga
contemporânea imagina possível: a seita que recupera, violenta e cruelmente,
almas, e a estúdio multimídia de roteiros de reality shows. O que acomete Estevão, ou que lhe atribuem como desígnio
fatal, poderá ser a inevitabilidade da finitude da condição humana ou doenças sociais
com que a atualidade nos contamina? Não há respostas, mas tão somente a
peregrinação de indivíduo de uma época de interrogações pelo mundo das
sensações, trituradas pela banalidade. Perder a mulher, matricular a filha na
Escola Para Crianças sem Afeto, ser enquadrado na legião daqueles que sentem
“falta generalizada de propósitos de viver” e ouvir correções semânticas que
atualizam o conceito de prostituição como “compartilhamento de experiências”,
são reflexos do cenário que ambienta da vida do inominado Estevão. Ao anotar os
itens do seu mergulho em direção à fuga da condenação, experimenta remédios que o mundo fracionado por
diluições e a fatuidade da cultura pop oferecem a tantas insatisfações
normatizadas. A saga que retrata Estevão com anti-herói de sua época,
contraponto de um Hamlet ocasional, idiota de vaga lembrança literária, mamute existencial em vias de extinção,
é representação de vítima condenada por veredictos coletivos. Felipe Hirsch
mergulhou neste percurso com igual intensidade com que se identifica com a cultura
pop, através da música e da fixação por listagens, e pelo uso de múltiplos
recursos cênicos que dialogam com a ambiente desse universo. Na exploração da
linguagem, seja reduzida à necessidade significar pela atribuição de nomes (“estou
lixando para o nome. Só quero viver”) , seja ao ampliar os meandros da
expressão cênica para inflar de estilos a tragicomédia de anestesiados
sentidos, o diretor não economiza recursos. Generoso no tempo (são cinco horas
de duração), excessivo na arquitetura (integra a tecnologia com elemento
pulsante da cena), contido na facilitação (explora com extensiva liberdade a
sua criação), anárquico no rigor (multiplica estilos para uniformizar inquietações),
a montagem se propõe como fruição, túnel iluminado por vários faróis do qual se
sai com envolvente percepção de que o teatro instiga, provoca e se revigora
constantemente. E para nos lembrar que os túneis cortam montanhas para abrir
passagem.
macksenr@gmail.com