São Paulo
Crítica/ Bom
Retiro 958 Metros
Subterrâneos explícitos de um bairro |
O grupo Vertigem, na sua intervenção no cenário
social, político, humano e urbano, inferido como cena, já utilizou igreja,
hospital, presídio e rio poluído como ambientação para que da invenção desses palcos se construísse dramaturgia cenarizada. Questões religiosas, no
início do grupo há mais de duas décadas, à epidemia de AIDS, no momento da sua
eclosão, até a exposição de fraturas na arquitetura social nas últimas
montagens, o Vertigem, mais recentemente, transpõe os limites do espaço para teatralizar áreas urbanas ( O Livro de Jó e Apocalipse 1,11), figurando, ora a saga do homem brasileiro desde a miséria nortista à condição
de lumpen em São Paulo (BR-3). Ou de executivos pendurados em
andaimes profissionais, sempre ameaçados de despencar, ética e socialmente de
enganosas alturas (Kastelo). Em Bom Retiro 958 Metros, a vertigem cênica
aponta para o bairro paulistano, tradicional ancoradouro de emigrantes (antes
judeus, atualmente coreanos e bolivianos), que com pequenas indústrias de
confecção de roupas se estabeleceu como pólo fabril e de serviços. Com a
decadência do bairro, em que muito de sua atividade se refugiou na
clandestinidade laboral e as mazelas sociais se acentuaram pela droga, o Bom
Retiro se transforma em palco aberto para
a ocupação teatral do Vertigem, refração de microcosmo real. Intervir
cenicamente em determinada área urbana, com histórico e especificidades
próprias, exige que essas características se explicitem, se façam dramáticas para que possam ser recriadas
como espetáculo. As ruas do bairro, que abrigam dois centros de cultura e
lazer, pequeno shopping center que comercializa a produção das oficinas de
costuras invisíveis e cafés com
produtos e clientes de origem coreana, no início da noite desaparecem,
tornando-se um cenário em que o vazio ameaça a emergência dos movimentos
subterrâneos. É neste Bom Retiro de shopping fechado, ruas completamente
despovoadas, mas com ruídos, alguns indistintos (oficinas em plena atividade),
outros ao longe (a passagem de trens) que a plateia
de poucas dezenas de acólitos desse ritual andarilho percorre os 958 metros
dessa teia de artérias silenciosas e equipamentos urbanos desgastados (o percurso termina no abandonado Teatro Taib) para
impregnar esse cenário de drama atualizado
de sua história.
Personagens percorrem a cena como espectros |
A peregrinação, que se inicia no shopping e termina em frente
ao teatro, junto a uma caçamba de lixo, é construída como dramatização, em que as cenas, conduzidas por “personagens e
espectros” determinam a caminhada e induzem a se integrar às referências do
entorno. Pululam “faxineira filósofa”, manequins “defeituosa e com coração”,
diabinhos da cultura judaica, “el dibuktronik” e “cracômanos”, que se
aproveitam dos espaços abertos com literalidade ilustrativa, sem propriamente extrair do cenário urbano
significações que não sejam derivativas de pesquisa de gabinete. O texto de Joca Riners Terron surge para
dar conotação aos quadros, funcionando como superestrutura imposta às imagens e,
que se imagina posterior a elas. O caráter narrativo derrapa na precariedade da
construção das cenas, e em nenhum momento a transcrição do que foi gestado no
processo de criação do espetáculo se encorpa para além da engenharia logística
de sonorização, iluminação e delimitação e uso das áreas exteriores. São
equidistantes da realidade subjetiva
do bairro, as tentativas de capturá-la como cena, a não ser com desenho algo
borrado pelas palavras, que se fazem legendas explícitas para fotografia
desfocada. Bom Retiro 958 Metros reflete
algum cansaço na investigação das possibilidades expressivas do grupo Vertigem,
como se houvesse urgência na refundação do dramático para redescobrir o
espaço.
macksenr@gmail.com