Crítica/ K – Uma
Leitura d’O Castelo
O aniquilamento do humano pelo poder despótico |
Moacyr Góes, adaptador e diretor da novela de
Franz Kafka, em cartaz no Teatro do Leblon, informa, já no título, sob qual
perspectiva pretende encenar o desencontro de informações às quais é submetido
o topógrafo K, contratado para realizar trabalho em aldeia dominada por
entidade onipresente, sustentada por aqueles que propagam a sua autoridade por
dissonâncias de vozes. Enredado em indicações contraditórias, perdendo o
sentido daquilo para o qual foi, supostamente, designado a realizar,
enfraquecendo-se num rastro de ordens desagregantes,
K é conduzido à solidão da perplexidade e à entrega ao absurdo. Góes faz a sua
leitura da narrativa através de conotação histórica de perseguição do homem do
século passado por meio da ascensão nazista. O indivíduo em oposição ao Estado
desumanizador e repressivo é esmagado em suas prerrogativas expressivas, mero
objeto de manipulação de projetos beligerantes e despótico de poder. Ao designar
um significante tão referenciado, o diretor talvez possa ter perdido maior dimensionamento da
encenação, apontando para uma causa, mais
do que para o estabelecimento de um pathos.
Mas Moacyr Góes pretende imprimir a sua leitura e é a partir dela que sua
montagem existe e deve ser percebida. O cenário de José Dias é um bom indício
do que o encenador pretendeu, com suas figuras (algumas fotograficamente
indicadas), bonecos e objetos suspensos por ganchos que lembram sanguinolentos
açougues, assim como o figurino de Carol Lobato, definidor e conclusivo da
leitura do diretor, e o visagismo contemporâneo de Beto Carramanhos. A
música de Ary Sperling marca com
tonalidade residual o ritmo cênico. Todo esse arcabouço, no entanto, se
distancia do clima opressivo e angustiante do entrechoque e desvios das palavras,
que desconstroem certezas e individuações. O caráter asfixiante do processo de
aniquilamento, a metamorfose provocada pelo pensamento pulverizado, e a
construção de forças dominantes estão ausentes desta versão de K. Em espacial na linha interpretativa
do elenco. Ricardo Damasceno, Daniel Villas, Sergio Kauffmann e Daniel Carneiro
adotam, em níveis diferentes de concretização, impressivas imagens que a
caracterização visual reforça. Carla Rosa Guidacci se multiplica em cinco
papéis, e em todos projeta um certo distanciamento que contribui para a clareza de cada um. Leon Góes demonstra
menos a ação de um poder que descaracteriza de um perplexo K, em favor do drama
híbrido do homem que desconhece as forças que agem sobre ele. O ator, de certo
modo, dramatiza a crescente
submissão, e não a vivencia como mergulho no absurdo. Leon Góes reveste K do
casulo político armado por Moacyr Góes, conduzido para deixá-lo,
monoliticamente, vestido de vitima.
Crítica/ Era Uma
Vez...Grimm
A crueldade e a fantasia da realidade dos contos infantis |
A abertura dos contos infantis dos irmãos Grimm,
o expectante “era uma vez”, é usada para desenrolar narrativas orais,
recolhidas pelos fabuladores alemães nesta versão musical para o teatro. Com
texto e letras de José Mauro Brant e música de Tim Rescala, Era Uma Vez...Grimm recria no palco do
Sesc Ginástico, em edições adulta e infantil, histórias clássicas, como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela e O Junípero, informando sobre o caráter, entre cruel e fantástico de
algumas delas, e a forma de redenção que finaliza a sua totalidade. A narrativa
teatral adota tom explicativo, para justificar a crueza de episódios em que o
inconsciente determina atitudes baseadas em arquetípicas memórias. Brant ao
introduzir os contos faz sucinta preleção sobre essas características,
apresentando rápidos dados biográficos dos irmãos. Esse didatismo explicativo parece destinado a atender à platéia
infantil, mais do que a adulta, já que os contos voltados para as crianças, por
seu caráter moralizante e
fantasioso, ainda que assustadores, se vistos pela ótica dos mais velhos podem ser recriados,
facilmente, pelas lembranças afetivas. Mesmo que para atenuar choques às
crianças e assegurar a elas a mitigação de temores, os autores estabeleceram
esse intróito que enfraquece as características intrínsecas das histórias
(perversidade, medo, violência) em favor de desnecessária contextualização. A
cena inicial, a que comenta o diálogo de Chapeuzinho com o Lobo em imagens sombreadas,
acondiciona e serve de anteparo a eventuais reações dos menores. Mas para além
deste invólucro inicial, Era Uma Vez...
Grimm é um musical bem acabado, com trilha sonora de qualidade, assinada
por Tim Rescala, e boas letras de José Mauro Brant. O visual – a cenografia em
formato de livro, com bonitas maquetes e delicadas projeções, o figurino,
adequadamente negro, e a iluminação bem afinada _ contribui para evocar a origem
dos contos, estabelecendo atraente ambientação. O grupo de músicos valoriza a
trilha, assim como o quarteto de atores-cantores. Ester Elias se mostra mais à
vontade como boa soprano que é, e somente uma relutante atriz. Janaina Azevedo,
em ambas as funções, se sai com grande desenvoltura. Wladimir Pinheiro
demonstra a extensão vocal de barítono, e em menor escala a de ator, enquanto
José Mauro Brant expande mais a sua versatilidade de intérprete do que a de
cantor.
Crítica/ 6 Aulas
de Dança Em Seis Semanas
Passos da vida marcados por ritmos musicais e afetivos |
Esse texto do americano Richard Alfieri, em
cartaz no Teatro Maison de France, é comercialmente infalível. Seguindo fórmula
de dramaturgia que sabe dosar escrita dramática com contrapesos de comédia,
bons sentimentos com relativa medida de realidade para construir situação
básica, meticulosamente contrastada, oferece na última cena recompensa de todas
as expectativas da platéia. 6 Aulas de
Dança Em Seis Semanas cumpre, disciplinadamente, todos esses requisitos,
mérito do autor que domina o playwriting sem perder de vista o fluxo das
bilheterias. A peça, que ocupa com competência a função e o papel para os quais
foi criada, exerce com perfeito ajuste seu poder de sedução em qualquer temporada,
não importa onde. Não sem razão, o texto vem sendo encenado, na última década,
em múltiplas cidades pelo mundo. Viúva idosa contrata professor de dança, e a
dupla, que aparentemente tem incompatibilidades irreconciliáveis, ao longo da
convivência vai desvendando um ao outro. As seis aulas, marcadas por diferentes
ritmos, musicais e afetivos, são complementadas por revelações, lembranças e fait divers sobre o dia a dia, sexualidade,
doenças, dosando os diversos temas de maneira a conduzir, sem percalços, o interesse da platéia. Funciona à perfeição.
Ernesto Piccolo acompanha com destreza o alinhavado do texto, resultando na
montagem em que o casal de atores mantém em passos bem marcados a envolvência bem
tramada da narrativa. Para tanto, Piccolo se cercou da cenografia limpa de Vera
Hambúrguer, que alinhou na brancura geral as projeções de imagens marinhas e de
ocasos solares. E de figurino, um tanto espalhafatoso, de Claudio Tovar, de
iluminação correta de Wagner Freire e da presente trilha musical de Fernando
Moura. Todo esse aparato serve ao andamento fluído, ainda que um tanto alongado
da encenação, mas que deve ser atribuído ao texto, propiciando ao elenco
oportunidade de interpretações cativantes. Tuca Andrade confere ar levemente
malicioso ao professor de dança, e dosa bem os momentos mais emocionais. Suely Franco imprime
vitalidade em atuação que corteja e atinge com simpatia a platéia.
Crítica/ Valsa N°
6
Voz de uma morta em busca do espaço onírico |
O monólogo da menina morta, escrito por Nelson
Rodrigues em 1951 e dedicado à irmã Dulce Rodrigues para marcar a sua estréia
como atriz, ganhou mais uma montagem, desta vez com Luísa Thiré e direção de Claudio
Torres Gonzaga. A adolescente Sônia recompõe a própria morte em tempos
narrativos que se confundem para armar mosaico existencial. Assassinada quando
tocava a valsa de Chopin, confunde-se na procura de sua identidade, revivida em
fragmentos de lembranças difusas. Com força verbal típica de Rodrigues, a morta
assume voz interior delirante, recompondo, gradativamente (esse é o tempo
dramático do texto) o código do conhecimento através da negação. A atual
montagem, em cartaz no Galpão do Espaço Tom Jobim, aposta no aparato visual,
que de certo modo é dada pelo figurino de Teca Fichinski, que por meio de
vestimenta ligada a fios e tecido transparente, completa o cenário onírico de
objetos desgastados pelo uso de Sérgio Marimba. É a partir dessa visualidade
que se desvenda o espaço de atuação da atriz, entre a evasão do pensamento e o naturalismo de certos momentos. Luísa
Thiré explora, parcialmente, esse aspecto onírico, com poucas variações e
alternâncias de intensidade.
macksenr@gmail.com