Duas Vidas Em Voz Única
Dani Barros: ponte entre zonas sombrias e a inevitabilidade do fado |
Crítica/ Estamira
Neste monólogo, baseado na personagem verdadeira do filme de Marcos Prado, Estamira não está solitária no mini palco do Espaço Rogério Cardoso. A atriz Dani Barros, além de intérprete da catadora de lixo de Gramacho, é igualmente personagem, dividindo com alguém em permanente estado de (des)conexão com o real e pungente jorro verbal, parte essencial da sua própria vida. Na ponte que se estabelece entre personagem e atriz, não há lugar para o drama, mas para a emoção límpida que emerge de zonas sombrias e da necessidade de cumprir o fado. Restos e descuidos que são jogados fora, sem se perceber que muitos ainda têm serventia e merecem atenção, são recolhidos na dramaturgia de Beatriz Sayad e Dani Barros com a delicadeza e o cuidado que faltaram às vidas de quem se fala. Não é fácil reproduzir num palco a contundência que tinha o documentário de Marcos Prado, mas esta não é menor, mesmo que se saiba que no teatro não deveriam caber medidas comparativas tão superficiais. Estamira é alguém que traz em seu mundo psicótico a unidade construída por lógica própria, dolorosa, conflituosa, desesperada, mas ainda assim unidade, feita de palavras e de incansável procura de um lugar (Jardim Gramacho foi o ponto de chegada). Caminho percorrido até que o destino se cumprisse. Ao se perguntar, em meio a tantas indagações sem respostas, “pra que saber porque nasce uma pessoa?”, Estamira adota para si o papel de ser “a visão de cada um”, a representação de uma humanidade viva em meio a seus despojos. No acúmulo do que não tem mais uso, a catadora e uma outra mulher, que surge, subterraneamente, como depoimento vivido, ganham significações pelas palavras que voam sem direção, como os sacos plásticos que cobrem o piso do palco. Esta intensa volatilidade de pensamentos, aparentemente inconclusos e perdidos em visões e vozes vindas de escuras cavernas interiores, é estabelecida em roteiro sem quaisquer apelos à emotividade. Fio que tece bordado cênico de nós amarrados por linhas tortas, a dramaturgia apóia a atriz, que tal como intérprete fiandeira, vai desatando com fina agulha afetiva os nós, mais ou menos cegos, dos emaranhados veios da loucura. Dani Barros se impõe, no minúsculo espaço da representação, como presença poderosa de uma mulher em atordoado conflito consigo e com o mundo, e como depositária de história herdada, tão arrebatada quanto a letra do belo fado português cantado por Soraya Ravenle. Dani Barros atinge decantação interpretativa, que está à serviço de delicada, ainda que contundente, exposição da infinita possibilidade do teatro em se debruçar, inesgotavelmente , sobre a aventura humana.
Crítica/ Susuné
Carolina Virgüez: desdobramentos em torno das origens, falsas e verdadeiras |
Esse monólogo, a princípio, trataria de reunir contos da colombiana Amalialú Posso Figueroa, mas é da identidade, étnica, nacional e vivencial, de que fala Susuné, em cartaz no Teatro Poeira. A atriz, de origem colombiana, mas vivendo há 30 anos no Brasil, Carolina Virgüez, perpassa as histórias de tintas realistas-fantásticas de sua conterrânea, para reconstruir a sua própria, de contornos latino-cariocas. A mistura, graças à dramaturgia de Emanuel Aragão, funciona bem, em função da vivacidade que Antonio Karnewale imprimiu na direção. A pretensão de abarcar universos amplos, como cultura negra, mutantes referências regionais e lembranças e sentimentos, pode deixar a impressão (e em muitos momentos, deixa) de que se estende demais o alcance do que se quer dizer. Por razões que somente a habilidade da dramaturgia e a costura do diretor podem explicar, Susuné é uma montagem agradável, com moldura etnográfica, e que enquadra viagem pessoal. A experiência de Carolina como estrangeira que chega ao Brasil aos 18 anos, e hoje aos 50, se descobre com vários nascimentos e alguns renascimentos, se confunde com as dos habitantes de um quilombo, onde negros, cuja a identidade transportada da África ao Caribe colombiano, mantêm-se ligados ao imaginário de origem. Preconceitos, inadequação, diferenças, histórias verdadeiras ou inventadas, Susuné deixa rastro narrativo que volteia por várias dessas impressões, levando o espectador por caminhos de fluídas dissonâncias. Não há um discurso impositivo que aponte para a platéia, exigindo-lhe qualquer reação a tantas situações que poderiam levar à indignação. A cena mediada de maneira habilidosa, sobrevoa questões mais áridas, conservando leveza, sincera e compromissada. O cenário de Marcelo Marques, painel com gavetas, que são retiradas e recolocadas, permite à atriz dar dinâmica à montagem. Ainda que um tanto pesadas, e algumas vezes, atrapalhando a atriz, no entra e sai de dentro delas, os gavetões ganham relevo pelas belas fotos impressas nas suas faces. Carolina Virgüez demonstra viver o espetáculo de sua vida, aquele que acalentou e serve, de certo modo, de balanço de carreira. Semi-biográfico, refletindo vivências e falseando outras tantas, Carolina imprime força física à sua interpretação, em constante movimentação, dançando e atuando com empenho, tornando ainda mais simpático um monólogo de uma só atriz, mas de múltiplos desdobramentos.
Cenas Curtas no Teatro e Outras Mídias
O jornalista, dramaturgo e cineasta Evaldo Mocarzel exibe, aos domingos no Canal Brasil, a série Teatro Sem Fronteiras, reunindo em oito programas até o final de dezembro o registro de montagens apresentadas em São Paulo pelos grupos Os Satyros, Os Fofos Encenam, Vertigem e Grupo XIX de Teatro. Cada programa de 25 minutos é dedicado a uma encenação. Depois de Hysteria e Assombrações do Recife Velho, estão previstas as exibições de Kastelo, Vila Verde, Memória da Cana, A Última Palavra É A Penúltima, Hygiene e Festa de Separação.
Christiane Jathay, que vem desenvolvendo investigação sobre a integração de linguagens, em especial na relacão do teatro com o cinema, acaba de encerrar a temporada de Julia, bem sucedida adaptação de Adorável Julia, de August Strindberg. Com depuramento dos meios, Jathay estabelece diálogo intenso entre teatro e cinema, ampliando a sua linha de trabalho, inaugurada em A Falta Que Nos Move, primeiro no palco, depois na tela, e que teve continuidade em Corte Seco. A temporada de apenas três semanas de Julia foi insuficiente para que o público pudesse avaliar a qualidade da montagem.
Estréia no circuito o documentário Domingos, primeira direção no cinema da atriz Maria Ribeiro sobre o autor, diretor e ator Domingos de Oliveira. O longa registra a vida e carreira de um dos criadores mais presentes na cena brasileira, tanto no teatro quanto no cinema. Em mais de 50 anos de atividades ininterruptas, Domingos de Oliveira se revela no filme de Maria Ribeiro esse personagem tão ativo na vida cultural do Rio.
Apresentado na mostra Première Brasil do recente Festival do Rio, Mentiras Sinceras, documentário de Pedro Asbeg, fixa os ensaios do espetáculo Mente Mentira. A produção do texto de Sam Shepard, dirigida por Paulo de Moraes, com Malvino Salavdor e Zecarlos Machado, entre outros, foi abordada através da relação dos atores com os personagens, em que um fala do outro num paralelismo que interfere na dubiedade da interpretação e na ficção documental.
O grupo Tá Na Rua, fundado e dirigido por Amir Haddad está lançando o site www.tanarua.art,br, que reúne a documentação sobre os seus 30 anos de atividades. São videos, fotos, recortes de jornais e livros que mapeiam a trajetória deste coletivo teatral.
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