quinta-feira, 3 de novembro de 2011

41ª Semana da Temporada 2011


Crítica/ Julia
Imagens duplas de interioridades divididas
A diretora Christiane Jatahy estabelece, a cada nova montagem com maior integração, o diálogo entre cinema e teatro. E não somente na utilização desses meios como jogo de manipulação, que se esgota no próprio processo de inter-relação. Jatahy introduz em sua dramaturgia cênica, planos narrativos que incorporam, dramaticamente, tela e palco, com cortes que quebram sequências e expectativas, na construção de arcabouço teatral que invade limites. Em Julia, em cartaz no Espaço Sesc, o espectro dessa interpenetração alcança o original de August Strindberg, transposto da Suécia  do século XIX para o Brasil do século XXI. Não se trata de uma viagem mecânica, temporal, ou de mudança de ambientação geográfica. Da utilização dos recursos da palavra do teatro e do visual do cinema, a diretora retira do drama da moça rica que se envolve com seu empregado, perdido no gélido norte europeu, correspondência que separa jovem inconsequente de seu motorista negro, que vivem atração física numa casa de campo de uma serra qualquer próxima a alguma cidade brasileira. Evidencia-se com esta atualização de lugar e tempo, o fosso que se manifesta com a interiorização de papéis sociais adquiridos culturalmente. A fixidez desses papéis, que não permite a liberdade do compartilhamento da paixão, é explicitado pela personagem de uma empregada, que confronta o sexo do motorista com a patroa. “Se eles (os patrões brancos) não forem melhor do que nós,  nada justifica o que somos.”  É pela introjeção de funções sociais e emocionais subalternas, de um lado, e do poder que sustenta preconceitos, de outro, que se define a transcrição do texto pela adaptadora e diretora. A duplicidade de imagens, cinema e teatro, conduz o olhar do espectador, ora para a representação direta, ou fragmentos dela entrevistos pelas frestas da cenografia, ora pela sua reprodução nas telas pelas filmagem que se acompanha, simultaneamente. A cenografia com telas que correm, entreabrindo e encobrindo a  narrativa, unifica a linguagem de mão dupla. A concepção cenográfica, assinada pela diretora e Marcelo Lipiani, além da fotografia do filme de David Pacheco, a iluminação de Renato Machado e a música de Rodrigo Marçal compõem a bem azeitada parte técnica. Julia Bernat e Rodrigo dos Santos têm interpretações de ímpeto físico, projetando nos personagens crescente intensidade que se desvia do dramatismo para criar um confronto, em que o distanciamento entre atração e negação se expõe numa circularidade de imagens e atuações convergentes. Um trabalho consistente de diretora em permanente inquietação.
        

Crítica/ Palácio do Fim
Relato de guerras perdidas 
O texto da canadense Judith Thompson, em cartaz no Teatro Poeira, tem conotação, indiscutivelmente, política. Não apenas pelo tema – antes, durante e depois da ocupação americana no Iraque -, mas também pela forma como a guerra desumaniza e ressoa sobre indivíduos. São três monólogos, que recriam relatos verdadeiros de quem emprestou e avalizou com seu conhecimento científico, invasão que sabia provocada por “uma pequena mentira”. E de uma militar que comete atrocidades contra o inimigo em nome de patriotismo envenenado por ideologia oportunista, e de iraquiana, que tem a vida arrasada pela perversidade de regime ditatorial. Diante dessas três experiências, a autora toma posição de repúdio, mas o faz sob a perspectiva daqueles que as viveram e através da impotência provocada pelas jogadas impessoais no tabuleiro político. Bombardeando suas existências, destruindo suas consciências, brutalizando seus sentimentos, destrói-se a capacidade de reagir à devastação. Conciso e contundente, individualizado e abrangente, detalhista e explosivo, Palácio do Fim  expõe indignação, sem bandeiras e ideologias, com a força direta de depoimentos que revelam inescapáveis feridas de batalhas que se tornaram derrotas definitivas. O diretor José Wilker orquestrou esse doloroso recital de vozes de intensidade sufocante com densidade cênica, abandonando ênfases e tons dramáticos. O diretor leva os atores a encontrar a interioridade de suas interpretações, permitindo que cada um  exteriorize a extensão do que os atinge, com sobriedade expositiva, provocando, deste modo, a reverberação intensa dos conflitos. O cenário de Marcos Flaskman, apenas três praticáveis e um telão, se mostra com a arquitetura simples, um espaço adequado. A iluminação de Maneco Quinderé, além de essencial na ocupação das áreas de representação, demonstra a sensibilidade e beleza de sua concepção. A música de Charles Azevedo é igualmente sensível. Camila Morgado, Vera Holtz e Antonio Petrin tecem, com refino interpretativo, os movimentos que iluminam sombrias indignidades. O trio desenha atuações tecnicamente limpas e emocionalmente tocantes. Interpretações inteligentemente viscerais numa montagem vigorosamente sintonizada com o nosso mundo e com as  melhores e inesgotáveis pulsões de que é capaz o teatro.


Crítica/ Obituário Ideal
Silêncio mortal para estabelecer o diálogo
Neste inventário, mais ou menos mórbido, de nossa atualidade, o autor Rodrigo Nogueira circunda a morte como metáfora das impossibilidades daquilo que não se consegue viver. Senão, plenamente, ao menos parcialmente. Para tanto, exibe a relação de um casal, já sem condições de manipular com alguma realidade afetiva os seus mútuos sentimentos, que inicia estranha jornada  em torno da estimulação da convivência através de visitas a velórios de desconhecidos. Deste ambiente, retira o pouco que ainda os mantém como par, e os resquícios para preservar seus diálogos. Diálogos entrecortados, indeterminados, vagos, inconclusivos. Para saber-se vivo, pelo menos como casal, é necessário se nutrir dos rituais da morte, para reproduzi-los  como simulacros na vida em comum. A construção do texto, em cartaz na Arena do Espaço Sesc, segue como narrativa nervosamente dialogada e na ironia de suas observações triviais, o embotamento das emoções. O ruído quase permanente do que a televisão despeja do exterior, é outro dos elementos deste painel doméstico, que atinge pelo inesperado da morte, o obituário ideal. Ambientada na década de 50, a trama é de agora, com os personagens cansados de receber tantas informações e sem saber como filtrar essa realidade explodida de indícios. Como diz o homem: “é muito de tudo. Quero ser possível”. Instigante, esta “comédia noir, seja lá o que isto for”, como se anuncia no início do espetáculo, confirma o crescente domínio de Rodrigo Nogueira da escrita dramatúrgica e cênica (também assina a direção, em parceria com Thiare Maia). Com humor corrosivo, a direção propõe aos atores linha ácida, que tanto Rodrigo Nogueira (com  carga maior na composição), quanto Maria Maya (aderindo, decisivamente, às oscilações imprevisíveis da personagem) desempenham com integral cumplicidade.


                                                     macksenr@gmail.com