Crítica/ Mulheres Sonharam Cavalos
Os sonhos a que mulheres se referem são apenas pesadelos, confinados em um prédio sombrio, como as memórias turvas dos que não sabem da sua origem, e daqueles que a conhecem e a dilaceram na convivência. O texto do argentino Daniel Veronese está eivado de metáforas e referências à história política de seu país, carregado de significados, tão equidistantes quanto o absurdo e o melodrama, mas que se estabelecem em cena como unidade de linguagem. As escadas e porões de uma arquitetura ocupada por grupo em estado de fricção, conduzem aos desentedimentos condicionados pelo mundo exterior (negócios mal sucedidos, filhos da ditadura de torturas, ruínas do edifício social) e pelo desequilíbrio interior (homens fracos, mulheres exaltadas, individuos sem rumo). Sob esse quadro desagregado, paira a sombra de algo maior, que comanda esses marionetes sem vida própria, vítimas de manipulações que os formaram e que lhes escapam. Não há realidade psicológica nesses fantoches de um universo (politico? social? nacional?) que se faz teatral pela quebra do realismo. Talvez fora dos seus limites geográficos, Mulheres Sonharam Cavalos possa perder alguma de sua força expressiva, percebendo-se o texto encorpado por segura escrita, mas um tanto perdido para plateias não familiarizadas com sua gênese. O diretor Ivan Sugahara, de certo modo, desconsiderou as particularidades regionais para criar montagem que procura envolvência quase física do espectador com a cena. A cenografia de Flávio Graff, ocupando a área do Poerinha com praticáveis que se distribuem por entre o público, permite que os atores cheguem, em vários momentos, muito próximo aos que os assistem. Esse corpo a corpo leva os conflitos à pura confrontação , ao cara a cara dos personagens com seus conflitos. O que é mostrado adquire efeito demonstrativo, ressaltando o embate (por quaisquer razões a que se lhes atribua) e o estranhamento (o caráter fluído das motivações dos personagens). O homogêneo elenco, além de Isaac Bernat e Saulo Rodrigues que têm atuações mais apagadas, como sugerem seus personagens, conta com Elisa Pinheiro (sustenta com dignidade a difícil, por que ameaçadoramente ridícula, cena final), Letícia Isnard (de dubiedade cruel), Analu Prestes (de doméstica tensão) e José Karini (em tensionamento dramaticamente virulento).
Crítica/ A Javanesa
Alcides Nogueira, autor de A Javanesa, em cartaz no Teatro Dulcina, escreve com fervor poético. Sua dramaturgia, mesmo quando visita outras possibilidades, sempre se avizinha da poesia como registro da sua prosa teatral. A história de amor, entre um homem visceralmente apaixonado por uma mulher, que se imagina liberta de compromissos, perpassa 30 anos de convívio, entre partidas e negações, Nogueira é, mais do que em qualquer outra de suas peças, derramadamente onírico. Romântico ao extremo e sem mêdo de usar a palavra em seu sentido mais desabridamente meloso, reproduz o verso da música de Serge Gainsbourg, La Javanaise que serviu-lhe de inspiração: “Nós nos amamos enquanto dura o tempo de uma canção”. É deste material amoroso que se desdobram os sentimentos, a princípio do homem, depois da mulher, e por fim de ambos diante da impermanência dos afetos. Sem freios, Alcides Nogueira usa imagens de flores, não por acaso chamadas de saudade, e frases que refletem desmedida paixão, o que, algumas vezes, se tornam redundantes e melodramáticas. O recurso de dar duas vozes a esse monólogo - o ator faz o homem e a mulher, em contraponto – dosa, parcialmente, os excessos, ainda que não elimine a disparidade entre o tempo dramático de um e de outro. A mulher, que revela mais complexidade do que o homem, tem tratamento mais aligeirado, e o golpe de teatro da última cena, reforça, mesmo sendo coerente com o espírito do texto, a indisfarçável efusão melodramática. O diretor Márcio Aurélio, que já havido dirigido em perfeita sintonia poética outro texto do autor (Prosa e Poesia), mantém igual delicadeza no tratamento deste monólogo em que a duplicidade interpretativa exigida do ator precisa guardar sutileza na diferenciação dos gêneros. O que é plenamente alcançado por Leopoldo Pacheco, que apenas com um cachecol, pequenos gestos e entonações, circula do masculino ao feminino. Com a mesma elegância que a direção adota para a montagem, o ator dedilha o texto como lembrança de uma poesia, talvez carregada demais de sentimentalismo, mas sem dúvida, poesia.
Cenas Curtas
Está sendo lançado em Recife o primeiro volume do livro TAP – Sua Cena & Sua Sombra: O Teatro de Amadores de Pernambuco (1941-1991), do diretor Antonio Cadengue. O grupo, que completa 70 anos de atividades, e é um dos marcos da cena pernambucana, terá um segundo volume, que contará a trajetória do mais longevo coletivo da cena brasileira até os dias atuais.
No ano do centenário de nascimento de Tennessee Williams (1911-1983) a editora É Realizações publica 26 peças curtas e seis longas do dramaturgo americano. Em tradução do Grupo Tapa, Mister Paradise e Outras Peças de um Ato, é o primeiro volume dos quarto previstos. Os demais são: 27 Carretas Cheias de Algodão e Outras Peças em um Ato e os últimos reúnem as peças longas.
Estreando esta semana no Teatro III do CCBB a peça vencedora da quarta edição de Seleção Brasil em Cena 2011, concurso de dramaturgia, que este ano teve 252 textos inscritos. Não Me Digas Adeus, comédia de humor negro do autor de São Caetano do Sul, Juliano Marciano fica em cena no Rio até janeiro. E para o próximo ano, o CCBB promete que a peça vencedora da quinta edição da Seleção Brasil circulará pelas sedes do Centro em Belo Horizonte (a ser inaugurada em 2012) e Brasília.
O diretor paulista Márcio Aurélio, que acaba de encerrar em São Paulo a temporada de As Ilusões Cômicas, de Corneille (há possibilidades de vinda da montagem ao Rio), está com outra das suas encenações em cartaz na nossa cidade. A javanesa (leia crítica acima). No próximo ano, Márcio dirigirá Hamlet, em Natal, para o Clowns de Shakespeare, grupo do Rio Grande do Norte, que apresentou Sua Incelença, Ricardo III, no Complexo do Alemão há dois meses, na programação do festival Tempo.
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