quarta-feira, 29 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (29/6/2016)

Crítica/ “Love story – o musical”
Outra sonoridade abafa as furtivas lágrimas
Em 1970, em meio a onda de paz e amor, o filme “Love story” percorria outra trilha amorosa. O casal que se une, apesar das diferenças sociais, e que somente a morte separa, representa com seu romantismo açucarado e melodrama choroso, um dos maiores sucessos da cinematografia da década. Previsível na condução da narrativa e indutor de emoções fáceis no desfecho, o filme cumpriu, com farta bilheteria, a sua carreira comercial. Tantos anos depois, dupla de ingleses decide ressuscitar em formato de musical o que parecia ter sobrevivido como registro de uma produção bem sucedida para a tela. Não se imagina que os autores esperassem igual repercussão ou ambicionassem recriar, no novo gênero, o que já estava acondicionado na origem. A dificuldade inicial da adaptação está no tempo que desgastou, severamente, os apelos sentimentais, e secou, implacavelmente, as furtivas lágrimas. Não há como embarcar nos diálogos, agora cantados, de juras de amor eterno sem que soem desarmônicos. Muito menos, se emocionar com a iminência da separação definitiva como ápice da emoção. Com trilha que não foge ao convencionalismo de canções padronizadas por fórmulas, a música acompanha a ação como elemento ilustrativo. A direção de Tadeu Aguiar procura dar algum clima romântico aos amuos do casal, com toques de humor que contrabalancem o final. À procura de efeitos que confirmem a espetaculosidade dos musicais, o cenário aparenta mais do que efetivamente é. Os figurinos adquirem mais cores do que na profusão de trocas de roupas. E a direção musical e a orquestra de cordas ampliam a sonoridade do repertório uniforme. Do elenco, com atuação e vozes contidas, se destacam Fábio Ventura e Kacau Gomes por força do protagonismo dos personagens. Em duetos, entre briguinhas melosas e melancólica separação, os intérpretes tentam reviver o  que se perdeu há décadas.  

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/6/2016)

Crítica/ “Nós”
O senso comum próximo da região do escuro
A encenação do grupo Galpão fica entre o pronome e o substantivo. É, ao mesmo tempo, a construção  coletiva de perplexidades, e a expressão amarrada de indefinições. “Nós” estabelece o ponto de interseção da encruzilhada entre o “tá difícil pra todo mundo”, e a tentativa de iluminar a “região do escuro”. Partindo da inércia e da desintegração, vivendo a dúvida sobre aquilo de que se fala, reproduzem-se códigos de comportamento e ritos de convivência que inibem uma existência mais verdadeira. A preparação de uma sopa alimenta falas incertas e corpos nus, numa dissonância de vozes e gestos que procuram onde poderá estar a ação real. Os atores são seus próprios personagens nesta ceia, em que os conflitos parecem ingredientes que nutrem o imobilismo do senso comum. As razões para se sensibilizar estão expostas, mas as reações se confundem com os contraídos desejos das três irmãs de  Tchecov, citados de passagem. A dramaturgia de Marcio Abreu, também diretor, e Eduardo Moreira desata algumas amarras do Galpão no estabelecimento de uma cena mais reveladora e ambiciosa, na qual há espaço para romper com rigores de texto e distender os limites da comunicação. A encenação se articula no naturalismo explodido e na adesão, racional e física, do espectador. As cenas adquirem uma circularidade nos apelos à identidade ao discurso e na envolvência da plateia. Os depoimentos dos atores se misturam às palavras das personas que interpretam, reiterativamente, como forma de fixação. A montagem demonstra alguma radicalidade, pelo menos para padrões tradicionalistas, ainda que seja bem menos provocativa do que deflagra na aparência. A aproximação indutora com a assistência, falha ao banalizar a distribuição da sopa e no convite constrangido à dança no final. O grupo fala em “viver mas não existir”, jogando para quem o assiste, a ideia de ativar a inação, mas não ultrapassa o quadro das situações que limitam  rompimentos. As contradições se ampliam no cenário de Marcelo Alvarenga, que serve a uma concepção estetizante no painel espelhado, em contrapartida à mesa de uso no  preparo da comida e bebida. “Nós” traz o Galpão para outro patamar, mais solto em sua exposição e menos contraído como imagem, deixando entrever a descompressão dos atores em interpretações disfarçadamente impetuosas. Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e, em especial Teuda Bara, se lançam a um arrastão comedido aos “subterrâneos gelados do eterno esperar”.   



   

domingo, 19 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/6/2016)

Crítica/ “Gilberto Gil – aquele abraço - o musical”
Abraço musical em repertório fértil 


O musical com roteiro e direção de Gustavo Gasparani evita a biografia para lançar um abraço musical no repertório de Gilberto Gil. São dezenas de canções, distribuídas em módulos que percorrem das origens sertanejas ao período da ditadura e da Tropicália, com exaltações à paz e ao amor, à negritude, à ecologia e à celebração rítmica de refestejar. O tempo de carreira do cantor e compositor e a permanência de sua obra estão contemplados na sequência vertiginosa com que “Gilberto Gil – aquele abraço - o musical” interpreta cenicamente quase oito dezenas de canções. À fartura de títulos corresponde a vibração coreográfica, em que vozes e instrumentos agitam o palco, emoldurado por contínuas projeções. Tanta abrangência, demonstra o desejo de relacionar a métrica de vida com a versificação de períodos sociais. É dessa conjugação que surge a dramaturgia musicada, a narrativa sonora de um repertório que se revela em letras que contam, não uma carreira, mas uma obra. Gasparani foi generoso na apresentação das canções, exibindo, em incansável sucessão, a variedade cadenciada de uma criação fértil. Tanto o roteiro quanto a direção, se apoiam no volume e na exuberância, como elementos físicos, que melhor interpretam  letras e músicas. O elenco, formando por atores, cantores, instrumentistas e performers, se distribui por todas as funções, num conjunto onipresente de gestos e vozes que se movimenta com notável fôlego. A direção de movimento e coreografia de  Renato Vieira, marcantes nos primeiros quadros, tendem a se repetir nos demais. A cenografia de Helio Eichbauer  projeta imagens bem escolhidas nas telas geométricas. O figurino de Marcelo Olinto, que registra cada fase musical, e a iluminação festiva de Paulo Cesar Medeiros, compõem a montagem com a consistente direção musical e arranjos de Nando Duarte. O grupo de intérpretes – Alan Rocha, Cristiano Gualda, Gabriel Manite, Daniel Carneiro, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Rodrigo Lima e Pedro Lima – revela harmoniosa integração à proposta multiplicada e excessiva da encenação.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/6/2016)

Crítica/ “O bigode”
Ligação interrompida com as certezas

Em conversa circunstancial com a mulher Agnes, Marc pergunta-lhe sobre a possibilidade de raspar o bigode, parte já tão integrada à sua imagem. Ao se desfazer dos pelos do rosto, a identidade visual vai se perdendo pela sucessiva negativa da mulher e amigos de que nada mudou na sua aparência. O que era uma certeza, se transforma em dúvida, e a materialidade do ato se desfaz em abstrata e esfacelada percepção. O romancista francês Emmanuel Carrère constrói essa narrativa labiríntica, a partir do cotidiano banal, levando o homem a incerteza de quem é, reduzido a viver no circuito estendido de uma travessia entre partidas e chegadas aos mesmos lugares. Os vestígios de realidade, que fotografias, documentos, viagens e parentescos não confirmam, ou talvez encubram, são pistas improváveis de quem não domina a própria história. A adaptação de Ricardo Leite Lopes mantém o caráter expositivo do original, que poderia dificultar a fluência cênica, mas as aparências de quem conta sugere a quem ouve, enganosa compreensão da trajetória camuflada. A montagem de Eduardo Vaccari tem algo de ilusionista e de ficção imaginária, seguindo formalmente os apontamentos de comédia absurda e de estranheza e provocação contrastadas. No espaço fantasioso de um tempo a reconstruir, o diretor assinala, algumas vezes pela movimentação do cenário, de outras, pela iluminação difusa, a diluição dos contornos da face, desaparecidos no barro da máscara. João Lucas Romero é um narrador onipresente, que se equilibra nas dubiedades dos despistes. Dulce Penna está menos intrigante do que exigiria Agnes. Vicente Coelho empresta um aspecto mais físico a personagem que se define pela fragilidade. 

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (8/6/2016)

Crítica/ “O corpo da mulher como campo de batalha”
A fragilidade do sentido da linguagem
A guerra, com seu séquito de horrores, destrói corpos, mentes e territórios, deixando feridas insepultas e histórias para não esquecer. “O corpo da mulher como campo de batalha”, do romeno Matéi Visniec, revive uma guerra particular a ser relembrada, que duvida do porquê de contá-la e da capacidade de entende-la. Dorra foi estuprada na Bósnia e Kate, uma voluntária americana, tenta devolver-lhe a vida. Ambas se confundem  nos despojos emocionais deixados no terreno arrasado das contendas. A  purgação das dores está na forma como narram o que parece ser impossível conter com palavras. Mesmo duvidando de que o tempo não cura tudo, e de que não há razão para o absurdo de muitos atos, restam possibilidades redentoras, ainda que apenas para que se continue. Os Balcãs, com suas etnias irreconciliáveis e “povos que nunca tiveram país”, são o cenário da violação do corpo feminino e de valas em que estão enterrados cadáveres da barbárie. A Europa é metaforicamente representada por “um monte de pedras velhas”, sob as quais, neste solo árido, caminha “o homem desesperado pela fragilidade do sentido da linguagem”. O texto de Visniec transita entre esse pano de fundo e o conflito das duas mulheres, confrontadas com  o feminino para além de nacionalidades. A narrativa é construída com o desdobramento do estupro, elemento deflagrador que ganha contornos de um drama pessoal, evoluindo para o painel da guerra, inflexionado pelo final carregado de esperança. O desvendamento progressivo das consequências do ato violador e as ligações com as guerras, pessoais e culturais, se friccionam, não como jogo de contrários, mas como uma partitura para duas vozes, que se conjugam em monólogos. Como em tudo nesta montagem de Fernando Philbert, a cenografia de Natália Lana busca ser essencial na concepção e limpa nos elementos. A iluminação de Vilmar Olos também faz uso de poucos e eficientes recursos. A trilha original de Tato Taborda compõe os comentários à ação. O diretor eliminou o que poderia se tornar supérfluo e reiterativo, em favor de uma leitura simples e direta, que valoriza a palavra como medida da força dramática. Não há exageros, muito menos cenas que sublinhem, para além da contundência do que é dito, a tensão das cenas.  Fernando Philbert demonstra ter se apropriado, sem qualquer arroubo falsamente inventivo, das exigências narrativas. As atrizes seguem, em suas interpretações marcadas pela exibição nítida das personagens, a mesma linha expositiva da direção. Fernanda Nobre sustenta as oscilações emocionais da jovem estuprada, ultrapassando, sem quebras, o desenho definido  de sua atuação. Ester Jablonski com rigor e asceticismo deixa Kate um tanto fria, em contraste com a virulência de algumas de suas descrições.

domingo, 5 de junho de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (5/6/2016)

Crítica/ “Esse vazio”
Amizade masculina presa em sentimentos interiores

No vestiário de um clube interiorano, três rapazes espreitam o velório de um amigo no salão ao lado. Estão tensos e um tanto desorientados para avaliar o que essa morte significa para cada um deles, e de como o cenário de suas vidas desaba diante da rotina, da estreiteza e do vazio da cidade que asfixia esperanças e corrói o presente. Os limites geográficos, reduzidos a um rua que desemboca no rio, se transferem ao estreito circuito emocional, estabelecido como espaço das lembranças e tempo de imobilidade. A morte confirma a paralização de suas existências, fixadas em evocações adolescentes e sem outra perspectiva senão a de perambular pelos códigos de amizade masculina. Companheiros de noitada e de namoros sem afeto, não escapam ao provincianismo dos sentimentos e à falta de coragem de romper com o que já não cabe em suas vidas. A narrativa do argentino Juan Plablo Gómez parece vagamente inspirada no filme “I Vitelloni (“Os boas-vidas”, de Federico Fellini, 1953), com personagens de vivências semelhantes a uma mesma Rimini que os aprisiona. O único dos quatro que consegue sair, e parte para a cidade grande, imprime no novo ambiente o peso da memória interiorana, tão doída quanto a imagem do quadro do poeta na parede. Com diálogos ágeis, que quebram a tensão e dosam com algum humor o metafórico confinamento-refúgio, a morte não está apenas na sala próxima, mas na auto-imposta superfície espacial em que vivem. Realista, sem psicologismo, com situações bem amarradas, “Esse vazio” é um texto concentrado como uma vinheta dramática. Sergio Módena explora a falta de motivações dos personagens, com atitudes nervosas que refletem sentimentos em estado bruto. O diretor registra os ruídos de medo e insegurança que chegam do salão ao lado, fornecendo aos atores os instrumentos para afinar o trio com a dissonância da partitura afetiva. A cenografia de Claudio Bittencourt, real na reprodução do frio vestiário, se perde no espaço do Teatro Glaucio Gill. Solta no centro da cena, ganharia melhor projeção se fosse mais fechada. Gustavo Falcão vive o único que parte da cidadezinha, transmitindo as contradições daquele que leva as suas hesitações para onde está. Sávio Moll, apoiado em muletas, torna simbólica a fragilidade de quem se desequilibra na rotina medíocre. Daniel Dias da Silva expõe as emoções pouco filtradas do mais expansivo dos amigos.