Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (15/6/2016)
Crítica/ “O
bigode”
Em conversa circunstancial com a mulher Agnes,
Marc pergunta-lhe sobre a possibilidade de raspar o bigode, parte já tão
integrada à sua imagem. Ao se desfazer dos pelos do rosto, a identidade visual
vai se perdendo pela sucessiva negativa da mulher e amigos de que nada mudou na
sua aparência. O que era uma certeza, se transforma em dúvida, e a
materialidade do ato se desfaz em abstrata e esfacelada percepção. O romancista
francês Emmanuel Carrère constrói essa narrativa labiríntica, a partir do
cotidiano banal, levando o homem a incerteza de quem é, reduzido a viver no circuito
estendido de uma travessia entre partidas e chegadas aos mesmos lugares. Os
vestígios de realidade, que fotografias, documentos, viagens e parentescos não
confirmam, ou talvez encubram, são pistas improváveis de quem não domina a
própria história. A adaptação de Ricardo Leite Lopes mantém o caráter expositivo
do original, que poderia dificultar a fluência cênica, mas as aparências de
quem conta sugere a quem ouve, enganosa compreensão da trajetória camuflada. A
montagem de Eduardo Vaccari tem algo de ilusionista e de ficção imaginária, seguindo
formalmente os apontamentos de comédia absurda e de estranheza e provocação
contrastadas. No espaço fantasioso de um tempo a reconstruir, o diretor
assinala, algumas vezes pela movimentação do cenário, de outras, pela iluminação
difusa, a diluição dos contornos da face, desaparecidos no barro da máscara.
João Lucas Romero é um narrador onipresente, que se equilibra nas dubiedades dos
despistes. Dulce Penna está menos intrigante do que exigiria Agnes. Vicente
Coelho empresta um aspecto mais físico a personagem que se define pela
fragilidade.