Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (24/8/2016)
Crítica/ “Clarice
Lispector & eu – O mundo não é chato”
Em 1998, Rita Elmôr interpretou Clarice Lispector
em “Que mistérios tem Clarice”, que buscava na obra da escritora vivências mais
cotidianas para expor a sensibilidade da autora. O roteiro procurava envolver o
espectador em universo mais pessoal e refletir a existência do dia a dia quando tocada por percepção interiorizada.
A atriz se apropriava da imagem de Clarice, através de composição física, que
reproduzia alguma semelhança física, acentuada por gestos como fumar e um leve
sotaque. Quase duas décadas depois, Rita retoma a personagem sob a mesma
perspectiva cênica, incorporando as lembranças da montagem da sua juventude e a
fixação fotográfica dos rostos gêmeos. O “desencaixe”, a que se refere a cronista,
é a palavra de ligação no tempo e deflagradora da convivência no espaço. A
junção se faz na simplicidade de textos que decifram sentimentos e no
depoimento da intérprete sobre a extensão de um diálogo. Os dois espetáculos se
encontram nos sinais que aproximam a atriz do passado da voz do presente,
ampliada pela sinceridade dos mistérios
dos significados. Rita conta as agruras de uma iniciante para produzir seu solo, que talvez não sejam tão
diferentes das atuais. Menciona as reproduções das suas fotos da primeira
montagem, como se fossem da própria Clarice. Revive, com humor, a longa espera
para se maquiar com o mesmo profissional que cuidava da escritora. O que foi
marcante é atualizado como comentários a afetos domésticos, identidade
confundida e emoções paralelas. Com a sua assinatura na dramaturgia e na trilha
sonora, além da produção, Rira Elmôr tem domínio absoluto sobre a encenação,
ainda que Rubens Camelo seja o diretor responsável. A sua função,
aparentemente, se restringe a conduzir a atriz por seu roteiro particular,
ajudando a comprovar, com alguma ironia, que o mundo não é chato. À vontade,
sem amarras conceituais, livre como em uma conversa, Rita Elmôr transita, em
pouco mais de uma hora, entre a memória de um retrato e a continuidade de uma
admiração.