quarta-feira, 13 de abril de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (13/4/2016)

Crítica/ “Entre corvos”
Enfrentamento físico aos delírios de Artaud

As relações entre vida e arte, loucura e sanidade, alienação e consciência que Antonin Artaud estabelece em seu inflamado ensaio, “Van Gogh – O suicidado da sociedade” são estendidas para o monólogo com dramaturgia do diretor Ary Coslov e do ator Marcelo Aquino (de “Entre corvos”). A crueldade como interpretação do juízo divino e das virtudes humanas – sobre a qual Artaud fez teoria e de que foi vítima - encontrou, no texto sobre o pintor, parentescos e semelhanças que os aproximava na expressão da lucidez na insanidade. A montagem de Coslov-Aquino procura integrar a pulsação intensa da palavra com a transpiração vigorosa do corpo. Sob esses extremos, um ator discute o seu papel diante das provocações de Artaud, próximas às suas dúvidas e explorando seus limites. Ao se confundir com as angústias artaudianas, traz para a cena as suas próprias inquietações, buscando na vulnerabilidade da atuação, espasmos do destempero. Numa frequência nervosa, trechos de escritos de Artaud e citações biográficas são ilustrados por imagens de obra de Van Gogh e outras referenciais, como as fotos  de Rubens Corrêa, intérprete de Artaud em 1986, e por trilha musical vibrantemente participativa. Em geométrica distribuição de movimentos no círculo, que delimita a área de representação, o jogo cênico se alterna entre a intenção de capturar a adesão da plateia, na conversa direta, e a explosiva força verbal em atrito com o corpo, na construção da narrativa. O formalismo, sempre em bases físicas, organiza a dramaturgia, mas não é capaz de traduzir com a mesma ênfase que se empresta a voz e ao corpo, o temperamento arrebatado de um criador em estado de fricção com o real. A direção de Ary Coslov se mantém confinada no desenho bem traçado, com uma “limpeza” que transpira o esforço, mas não o odor do suor. A aparente contenção do diretor para não “sujar” o quadro, esfria a encenação, mas provoca, pela via transversa do desejo de ser comunicativo, uma econômica mas ativa envolvência. A interpretação de Marcelo Aquino é pautada pela indiscutível identidade que cria com o universo do dramaturgo francês, e por seu domínio da gramática vocal e corporal. O ator se conduz com o rigor da execução bem trabalhada, com cuidado técnico no acabamento e na minúcia do detalhamento. O que talvez tenha escapado a esse enquadramento tão demarcado fosse a procura de maior sincronia com as rupturas e o desespero de um artista com os nervos expostos.