Crítica do Segundo
Caderno de O Globo (7/1/2014)
A comédia de Daniela Ocampo sobre os costumes da
vida digital é composta quase como esquetes, a partir dos quais constrói narrativa
que se equilibra nas divertidas observações da autora. A perda de todos os
dados pessoais e informações armazenadas no celular provoca o colapso na vida
de Claudio, que tem rompida as suas relações com aqueles que o cercam e a
identidade destruída pela abstinência virtual. Ao implantar um chip no cérebro
que armazena múltiplas plataformas digitais, cria sistema próprio de acesso,
adquirindo extraordinária inteligência e rapidez na manipulação de dados. A
necessidade de se apoiar numa trama com contornos cibernéticos é justificada
por Ocampo como forma de contrapor os absurdos de universos cada vez mais
contraditórios. A conexão universalizada pelos aplicativos e o artesanato da
convivência real se distanciam numa velocidade planetária, diluindo em nuvens
de desconhecidos a memória verdadeira. Mas esse entrecho, que se desvia para o
humor mais direto e crítico ao capturar comportamentos, não deixa de insinuar alguma
ingenuidade com seu lirismo reforçado pelas imagens do menino e na empinagem de
pipas. A estrutura de esquetes, que evolui com a série de atitudes geradas pela
convívio com smartphones, tablets, e a autoimagem dos selfies, registra desde a
inadequação tecnológica dos mais velhos à incontornável ligação generalizada
com o mundo virtual. Marcos Caruso imprime dinâmica às cenas, capaz de manter o
ritmo em velocidade de cruzeiro, a salvo de qualquer turbulência ou ameaça de
queda nos dois atos. Sem praticamente cenário, com a iluminação de Felipe
Lourenço como uma coautoria na direção e a evidente e criteriosa preparação
corporal de Arlindo Teixeira, Selfie é
uma montagem bem realizada, com a pretensão de ser apenas um divertimento com
humor e nenhuma concessão às facilidades do riso induzido. A dupla de atores por
suas inteligentes interpretações e movimentação performativa é responsável pela
maior qualidade desta comédia bem escrita. Com a voz e o corpo como elementos absolutos
para compor a atuação, Mateus Solano e Miguel Thiré se desdobram como
sonoplastas, ambientando sonoramente gestos que figuram a expressão delirante da
vida contemporânea presa ao backup. Os dois atores se complementam, tanto ao
emitir sons que reproduzem aparelhos, quanto ao projetar objetos e reações
através da mímica. Feito uma dupla clássica de cômicos nesta pantomima da era
cibernética, Solano e Thiré atualizam, como bufões da atualidade, o espanto pelo
convívio com as novidades vertiginosas.