quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (14/1/2015)

Crítica/ Hora Amarela
Efeitos perversos de uma guerra interior
Uma guerra com inimigo sem nome e de identidade difusa conduz grupo, em busca da sobrevivência, a um porão, onde por meios precários, tenta resistir à indignidade. A mulher que habita este esconderijo à espera do marido, que saiu há meses, à procura de comida, recebe refugiados ocasionais que trazem ecos da guerra e suas consequências em cada individualidade. Uma mulher com bebê se mistura a um homem estropiado que comunica a morte do marido da hospedeira eventual, enquanto fugitivo é morto por não conseguir falar uma língua perceptível. Nesse quadro de repressão e ameaças ocultas, os métodos de resistência parecem esforços para se manter, tão somente, vivos como despojos humanos. O americano Adam Rapp reproduz situação de confinamento, provocada pela violência e a insensatez do conflito geral, ao caracterizá-lo em seus efeitos perversos sobre indivíduos condenados a sobreviver a condições adversas. Não se sabe o caráter desta guerra exterior, se religiosa, econômica ou política. É conhecido apenas o conflito interno de cada um para continuar vivendo num porão de emoções insalubres e aceitação conformista. O amarelo, sinal de atenção, marca a hora da trégua, o momento de confirmar a possibilidade de continuar a existir nos subterrâneos, confinado ao cinzento da falta de horizonte. O autor cria metáforas para a manutenção de condições que se tornam imutáveis e definitivas, que são aceitas passivamente. Não há revolta, apenas a certeza de que os escapes são impossíveis, já que a guerra não tem denominação, portanto não há contra quem lutar. E mesmo a interiorização do medo, nada mais é do que um cacoete de comportamento, sem qualquer lastro nas atitudes dos personagens. A narrativa de Rapp se parece mais com a ambientação decadente e futurista do filme “Blade Runner, O Caçador de Andróides”, do que a de um drama psicológico como se imagina pretender. Monique Gardenberg mantém-se na linha de direção de textos contemporâneos e apoio técnico para encenações sofisticadas. A cenografia de Daniela Thomas e Camila Schmidt, a iluminação de Maneco Quinderé e a trilha original de Lourenço Rebetez e Zé Godoy são decisivas na construção de linguagem visual e sonora de detalhamento refinado. O figurino de Cassio Brasil completa a elegância de instrumentos desta tocata para música de dissonâncias. As tensões vividas pelas personagens são um tanto enfatizadas pela diretora, que amplia em permanente fricção nervosa o que Rapp costura com artificialismo. Daniel Infantini tem presença coreográfica. Isabel Wilker, também responsável pela fluente tradução, sobrecarrega de intenções a mãe que se droga. Emílio de Mello adota caracterização de impacto visual para a figura do maltrapilho. Daniele do Rosario e Darlan Cunha têm interpretações limitadas, em parte pelo improvável desdobramento da trama que os submete ao papel de meros veículos para o desfecho mal resolvido. Deborah Evelyn tensiona, no limite perigoso da hiperatuação, os tempos emocionais da enfermeira que acolhe os visitantes fugitivos de uma guerra cinematográfica de ficção científica.