Cena Múltipla
do Espaço Sesc
Crítica/ Elefante
A ideia é de Igor Angelkorte e o texto final de
Walter Daguerre desta montagem em cartaz na Arena, em que a artificialidade da
vida, mantida à margem do envelhecimento, lembra bastante o romance de Simone
de Beauvoir, Todos os Homens São Mortais.
Mas ao contrário da obra da escritora francesa, a estagnação do tempo é
garantido pelo consumo de uma pílula, numa sociedade estratificada, dominada
por cientificismo social. De outro lado, existe uma ilha na qual a natureza
vital permanece e seus habitantes continuam submetidos ao fluxo do tempo e à
inexorabilidade da morte. Quando um dos homens, medicadamente conservado,
decide emigrar, e em consequência envelhece, ao voltar se defronta com a imutável
aparência da mulher e dos pais. Deste conflito, Daguerre extrai algumas
reflexões sobre sociedades centralizadoras, eternização da juventude e
falsificação da imagem. A estranheza inicial provocada pelo deslocamento entre o
que a imagem mostra e a idade registra é sustentada com efeito dramático, ao
mesmo tempo em que a evolução da trama leva a um final, senão surpreendente,
pelo menos inesperado (o autor usa de truque ao conduzir o espectador a
acreditar na morte de um e não de outra personagem). Igor Angelkorte mostra
sensibilidade na direção, afinal a ideia da narrativa é sua, e talvez por esta
razão, o tratamento que dá à montagem está envolvido numa aura emocional. Algumas
cenas têm cravado desenho poético, como a de movimentos de dança, a do quase
negror da iluminação quando se menciona a perda da visão (a luz é de Renato
Machado) e na do desvendamento da nudez. O cenário de André Sanches, com poucos
elementos, incorre no problema que tem surgido na ambientação da Arena do
Espaço Sesc em recentes espetáculos.
Parte da plateia, na cena em que um cartaz é desenrolado no piso, deixa de o
ver, obstruído por objeto do cenário. Os
atores – Pedro Nercessian, Lívia Paiva, Samuel Toledo e Julia Lunnd – se
compõem com certa harmonização interpretativa, num conjunto que demonstra mais
uma orientação diretorial do que individualizações na forma de executá-la.
Crítica/ Todas As
Coisas Essa Viagem
Pedro Brício, autor deste texto em cartaz no
Mezzanino, tem se revelado um dramaturgo com obra em crescente ampliação
temática e exploração formal, além de ter o mérito de manter pelo menos uma de
suas peças em cena a cada temporada. Em Todas
As Coisas Essa Viagem se volta para uma mulher, de partida para aventura
existencial, cansada da vida rotineira de casal, filha e mãe, mas que diante
deste spleen generalizado é
confrontada com o passado e o presente, deixando levar pela incógnita do
futuro. Essa trama é desenvolvida, integrando os vários tempos numa narrativa
desarmada sequencialmente, incidindo sobre o próprio instante em que o
espetáculo está se realizando, e pontuando com alguma intervenção musical. Pode
parecer que tantos elementos combinados possam camuflar a simplicidade de um história
suavemente desenrolada, e é, parcialmente, o que acontece. A utilização da
música, uma brincadeira que já se anuncia no prólogo, acaba por se tornar um
efeito sem lastro, independente da qualidade das composições de João Callado. Cristina
Moura dá um tratamento múltiplo a essa trama de crise existencial,
aproveitando-se dos indícios (humor
melancólico, musical de circunstância, dança dramática) do texto para recorrer
a essas variadas possibilidades com alguma destreza. A dupla de atores – Soraya
Ravenle com maior oportunidade, e Guilherme Piva – desfila com desenvoltura os
sentimentos hesitantes do casal personagem.
Crítica/ O
Príncipe
Luta animal ilumina a racionalidade da palavra |
A exposição do pensamento político de Maquiavel,
através de sua obra O Príncipe, ganha
versão teatral adaptada pelo ator Henrique Guimarães e Ana Vitória Monteiro e
em cartaz na Sala Multiuso, se distendendo até a fronteira em que se confundem
a prática da conquista e sustentação do poder como valor intrínseco do
exercício do mando. A estratégia de sua reflexão conduz à cínica e realista perspectiva
de que o caráter ético da ação política se condiciona pelos meios para que se
alcance os fins, estes os imperiais motivo, razão e pragmatismo para a ascensão
e manutenção do poder. Transformar tão complexo e arrebatador pensamento, mais
sensível à ciência política que à poética cênica, é uma corajosa e desafiante tradução
que exige ser absorvido pelo novo
meio expressivo. Na maior parte, o monólogo dirigido por Leona Cavalli atinge
vida teatral autônoma, com a introdução de vivências de Maquiavel, referências
e personagens históricos e integração da
plateia na forma como são propostas assertivas e dúvidas, que levam o
espectador a inconclusões, justamente o que o faz pensar. Leona Cavalli
equilibra o sólido apoio corporal demonstrado pelo ator, com a necessidade de clareza e autoridade exigidas pela palavra de Maquiavel. Numa concepção em
que o figurino (uma grande capa que é manipulada como mais um elemento da ação física) e os adereços (uma mala da
qual se retiram objetos) algumas vezes dramatizam
em excesso, é visível a intenção de ativar, permanentemente, a cena, o que faz
oscilar os tempos interpretativos do ator. Henrique Guimarães tem momentos,
densamente construídos em que ressalta a candente sonoridade da escrita, e
outros em que a habilidade corporal
se sobrepõe à voz. Uma das cenas mais bonitas é aquela em que Guimarães, delimitado
por um filete de iluminação, integra voz e corpo em luta animal.
Crítica/ Antes da Chuva
A montagem do
texto do diretor Rodrigo Portella, que está em cartaz na Sala Multiuso, é
oriunda de Três Rios, cidade que abriga a Cia Cortejo e onde o diretor
desenvolve a sua interessante carreira de encenador. Como no espetáculo
anterior, Uma História Oficial, já apresentado
no Rio, também Antes da Chuva é
baseado em texto de Gabriel Gárcia Márquez, aproximando o realismo fantástico
do autor colombiano à realidade interiorana da sede do grupo, estabelecendo
integração de universos. A realização não poderia ser mais despojada, com o
palco desprovido de qualquer adereço, iluminação buscando diálogo com os atores
e a dupla de intérpretes como o traço definidor da cena. Portella fatia o texto
para traduzi-lo como ação e movimento, numa forma narrativa que evita a mera
ilustração para deixar que aflore o jogo dos afetos nos tempos do cólera. O
confronto entre sentimentos mantidos por anos como razão única para continuar e
a estreiteza de um mundo que se justifica pelos seus limites, circula por
constante balé de corpos que se movimentam ao ritmo das aproximações e
rejeições. Os atores e seus corpos são únicas e complementares presenças,
cenário de seus diálogos, iluminação de seus gestos e figurino de suas interpretações.
Bruna Portella e
Luan Vieira demonstram integral apropriação das propostas da direção,
compartilhada por Rodrigo Portella e Leo Marvet, sustentando nos 60 minutos da
encenação, intensa reverberação de embate emocional, solidamente construído na
sala de ensaio e trazido ao palco com a integridade do exercício bem desenvolvido.
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