Olhares
Femininos
Crítica/ O Lugar
Escuro
Crônica afetiva de sentimentos contraditórios |
O ponto impenetrável em que a consciência vai se apagando
conduz a lugar escuro, lá onde o passado aparece em momentos, o presente se
reduz a instantes e o futuro se dilui no vazio. Para os que se defrontam com esse
processo de afastamento da vida, os movimentos são, de início, de
incompreensão, para depois se transformarem em impaciência, até atingir a
dolorosa certeza da aceitação. Deste mundo que se perde é o que trata O Lugar Escuro, em cartaz no Espaço
Sesc, adaptado do livro de Heloisa Seixas, no qual três mulheres, avó, mãe e
filha, convivem com o desgastante mal de Alzheimer que assola a mais velha. Há
muito de sinceridade no depoimento carregado de carga emocional da autora, que
expõe a crueza da doença como reflexo naqueles que assistem e convivem com a
desagregação como algo que se tem que enfrentar. A narrativa é da perspectiva
da filha, que incorpora em si sentimentos mutáveis, alguns contraditórios,
outros incontornáveis, todos carregados de afeto interposto por reações de verdade
humana. A autora, no entanto, manteve a narrativa num plano suave, sem expor
muito as personagens, preferindo concentrar-se nos da filha, reduzindo a neta a
um contraponto dramático frágil e a mãe a um desenho esquemático. Ainda que
falte maior dimensão ao texto, a própria temática e o cuidado com que Heloisa
Seixas o tratou levam o espectador a aderir à montagem. Sem apelos emotivos e firulas
melodramáticas, a direção de André Paes Leme segue o despojamento da peça,
evitando acrescentar-lhe qualquer outro detalhe que o desvie da crônica
afetiva. Simples, contido e intimista, o espetáculo fica um tanto esgarçado na
circunferência ampla arena, que o pequeno cenário de Carlos Alberto Nunes (dois
cubos encaixados) só amplia. A luz de Renato Machado procura preencher o vazio
da área de representação, com algum resultado. O diretor, que distribui as
atrizes em constante movimentação pelo espaço, atribui à personagem portadora
da doença, circulação ativa que contrasta com o estático do Alzheimer. Clarice Niskier mantém em atuação marcada
pela tom narrativo a característica proposta pelo texto. Laila Zaid, mesmo com personagem
tão diluída, tem presença delicada. Camila Amado evita carregar em quaisquer
dos sinais exteriores que poderiam apoiar a sua interpretação, para traduzir a
perplexidade das perdas e das dificuldades de alcançar a hora do descanso definitivo com minúsculos
recursos de vasto repertório.
Crítica/ O Teatro
É Uma Mulher
Quatro faces da geometria das mulheres |
Rodrigo Nogueira quis fazer do teatro, mulher, na
peça em cartaz no Teatro Ipanema. Para tanto criou narrativa que desarma a
linearidade e o tempo para misturar truques de cena com artimanhas femininas.
Com habilidade e domínio da escrita, o autor aproxima técnica e gênero, reunindo
situações que revelem alguns papéis que elas desempenham, individual e
socialmente. Filha se mostra rejeitada diante de mãe política e
profissionalmente comprometida, que por sua vez abandona a amante e rouba o
marido da amiga. São atitudes, não exclusivas de mulheres, que Rodrigo Nogueira
alinha ao eterno teatral, com algo de
vaudeville e pitadas de melodrama, vivenciado por quatro atrizes. O autor
constrói trama que se desenrola em faces de figura geométrica, propondo à
plateia que percorra cada uma delas num percurso de estranhamento que se conclui pela percepção do caminho. Curiosa
e envolvente, a peça na versão cênica, assinada pelo autor, amplia os seus
melhores aspectos em montagem fluente e equilibrada. A cenografia de Aurora dos
Campos e a iluminação de Daniela Sanchez funcionam, ainda que o figurino de
Gabriela Campos seja característico demais na procura de definir as personagens. No quarteto do elenco, Alessandra Colasanti
sobrecarrega na ambiguidade da amante, enquanto Luciana Borghi intensifica a
dramaticidade da filha. Raquel Rocha dosa muito bem o humor da mulher traída. O
maior destaque é o de Malu Valle, não só pelo papel centralizador como pelas
transformações por que passa a personagem.
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