Dostoiévski e Bowie no Jardim Botânico
Crítica/ O Idiota
Sugestões visuais para capturar novelão caudaloso |
É um desafio tão grande como a de ler o romance de Fiódor Dostoievski, a transposição para o teatro de O Idiota. A abrangência da narrativa literária, com seu caudal descritivo e minúcia detalhista das angustias de personagens assaltados por tormentosos episódios, propõe aos leitores percursos diversos de recepção, capazes de os conduzir a mergulhos no psicologismo da trama e à negação dos múltiplos atalhos que parecem desviar a unidade da trama. Para chegar ao palco, a adaptação precisa centralizar-se em algum aspecto definido pelo qual se pretenda desenhar a cena. Se no romance, de origem folhetinesca, o fluxo narrativo se mostra, aparentemente, desviante do centro dramático pela profusão de detalhes e descrições, na versão cênica, o adaptador Aury Porto não poderia fugir à síntese, senão redutora, pelo menos funcional. Mesmo com esta contenção em 12 cenas, a montagem de Cibele Forjaz, dividida em três partes, alcança seis horas de duração, que pode ser assistida em duas sessões, separadamente e em dias alternados, ou numa única e contínua apresentação. Esse caudal, romanesco e teatral, se encorpa na medida em que se procure imprimir interpretação àquilo que se lê e vê. Além do volume de informações contido no literário, há que encontrar a densidade do material produzido pelo autor russso. A encenadora persegue esse painel avassalador através do exercício da linguagem cênica como meio de encontrar significações para sua estrutura e realização em palco. Como diz um dos personagens da saga do pateticamente lúcido Míchkin, “as coisas não cabem nos nomes”. Intentar dar nome à sua construção teatral, Cibele Forjaz procura tirar a “névoa dos olhos” do espectador, para lançá-lo numa sequência de quadros, que nascem uns dos outros, jogando com o olhar para direções e formalizações diversas, em peripatético jorro de imagens. É identificável a intimidade da diretora, que por anos foi iluminadora dos espetáculos do Oficina, com a teatralidade de José Celso Martinez Corrêa. Mas diante deste desafio e das soluções que buscou para traduzir o romance, percebe-se a autonomia que conquista ao longo do espetáculo. Lá estão as citações carnavalizantes de Zé Celso, ao mesmo tempo em que os apelos, bem mais sutis, é verdade, à participação da plateia, e a circulação da montagem por várias áreas do Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim e seu exterior, tão ao estilo do encenador paulista. Por outro lado, cria-se em muitas cenas uma poética que remete à uma sensibilidade bastante próxima das nossas emoções, seja pela trilha eclética de Otávio Ortega, seja pela diferenciação estilística (melodramática, farsesca, dramática) do elenco. Cada cena se insinua como possibilidade do inesperado, independente da leitura anterior do romance, em que a platéia é levada a ser capturada pela sua disponibilidade de se integrar à corrente das sugestões dramáticas. Há belas e impactantes cenas que se desenrolam no invólucro cenográfico de Laura Vinci, de inegável força expressiva. A gare do início, que dá a partida para a viagem com o idiota, cria envolvência, sonorizada por repertório brasileiríssimo, e atinge culminância no encontro dos casais desavindos num hotel-cubo-brinquedo infantil trepa-trepa. Nesta trajetória, de estímulos múltiplos e aguçamento de percepções para o público, os atores demonstram integral participação na arquitetura da montagem. Aury Porto, Fredy Allan, Luah Guimarãez, Lúcia Romano, Luís Mármora, Sérgio Restiffe, Sylvia Prado e Vanderlei Bernardino são os acólitos desta celebração para encenar um suculento novelão.
Crítica/ Outside
Na mira da cultura pop com muito som e pouca fúria |
Com o aposto explicativo de “um musical noir, livremente inspirado no universo artístico de David Bowie”, Pedro Kosovski empreende a recriação teatral de história estampada no encarte do disco Outside, de 1995, do cantor e compositor inglês David Bowie. Lá estava dito que a morte de uma garota de 14 anos seria uma maneira de se imolar pela arte. O paralelismo entre a produção fonográfica de Bowie e o texto em cartaz no Espaço Tom Jobim se estabeleça, talvez melhor, se for possível ter acesso ao encarte que deu partida à escrita teatral, e ouvir, com atenção, as faixas do disco. Do contrário, resta ao espectador desinformado, a trama intrigante, a manipulação banal de gêneros e as alusões referenciais sem correspondência na sua materialização dramática. No uso do corpo como meio artístico, comercializado como body art, analisado por críticos oportunistas à serviço de modismos, e com a pressão de proprietária de galeria que financia a descoberta de crime para torná-lo comercialmente rentável, o autor explora a arte como veículo de criação e de mercantiiização. E a ação tem como cenário a cultura pop, revista sob a perspectiva de consumo imediatista e de superficialidade de sua nomenclatura e visualidade feérica. Kosovski recorre à estética de show de rock e a entrecho de novela policial para que personagens tipificados, que adotam nomes identificáveis – Peggy Guggenheim, Norma Jean Baker (como se chamava Marilyn Monroe) e Teodoro Adorno - cantem a fragilidade da arte nesses tempos de impermanência. A discussão proposta e a sua realização parecem em conflito como meios expressivos que se negam mutuamente. O diretor Marco André Nunes adotou o formato de show de rock, dispersando ainda mais, na horizontalidade do palco do Tom Jobim, os espaços narrativos dramáticos já esgarçados de origem. Com direção musical e música de Felipe Storino, iluminação de Renato Machado, cenário e figurino de Flavio Graff, a montagem demonstra esforço e empenho, que se estende ao elenco, que canta, dança, sapateia, mas mantém linha interpretativa um tanto oscilante. Outside é uma proposta pop, com muito som e pouca fúria.
O Que Há (de melhor) Para Ver
Crônica da Casa Assassinada – Nesta saga de danações, adaptada com a mesma densidade narrativa do romance de Lúcio Cardoso, o diretor Gabriel Villela revigora a sua imagística mineiro-mística com cenário arrebatador na reprodução de portal de igreja barroca e figurinos que envolvem os personagens em lençóis-mortalhas. Montagem de beleza rascante tem elenco que se harmoniza com vigor a esse culto à putrefação do prazer. Teatro Maison de France.
Um Violinista no Telhado – Baseado na cultura judaica, fixada no microcosmo de uma aldeia russa, no início do século XX, o musical ganha versão com igual rigor de realização que Charles Möeller e Cláudio Botelho têm mantido nas suas montagens. Com a mesma capacidade de selecionar os elencos, dos protagonistas às crianças, a dupla acerta, uma vez mais, no harmonioso e eficiente coletivo de atores, cantores e bailarinos e na ótima direção musical e na orquestra. Oi Casa Grande.
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