A França em Dois Tempos
Crítica/ Cyrano de Bergerac
Coreografia cênica embrulha triângulo de capa e espada |
Há muito no teatro, Cyrano de Bergerac é um personagem de sonho para atores que imaginam que, ao interpretar essa figura poetizada pelo romantismo do final do século XIX, se consagrariam e referendariam suas carreiras. Não se sabe se Bruce Gomlevsky, jovem e inquieto ator sintonizado com a cena contemporânea, se enquadraria neste caso. Como é o produtor do espetáculo em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, é incontestável sua atração pelo narigudo adorador de Roxane. Qualquer que tenha sido a motivação de Bruce, procurou se acercar de equipe que tratasse esse drama de capa e espada romântico com vitalidade cênica. Sem cair no risco de restringir os diálogos poéticos do texto de Edmond Rostand, em fluente tradução de Marcos Daud, em condutores para uma narrativa de mera ação, a montagem de João Fonseca estabelece sua própria frequência expressiva. A ambientação de Nello Marrese reveste o palco com telões escurecidos, mesas e cadeiras, que ganham dinâmica cenográfica, desmembrando-se em pontes, torres, estalagens e mosteiros. Esse visual se metamorfoseia, não somente, para as mudanças de cena, mas adquirindo o compasso que o diretor João Fonseca imprime à encenação. Bem ao estilo dos seus espetáculos no início do grupo F...Privilegiados, na década de 90 – muitos atores, ação contínua, massas cênicas em movimentação quase coreográfica - Fonseca procura agitar a narrativa, sem perder o caráter da palavra. Também não reduz a montagem a demonstração do bom aprendizado de esgrima. Mas esta versão de Cyrano, não levanta vôo, falta-lhe visão mais consistente do diretor, para além da bem comportada e ágil administração coreográfica que embrulha o espetáculo. Perseguindo a correção e a agilidade, João Fonseca se exime de marca mais firme diante do material dramático, seguindo cartilha mecânica de colocar de pé espetáculo sem maiores quebras. O que, talvez, confirme a desconfiança de que a montagem de Cyrano de Bergerac seja mais um projeto de carreira de um intérprete, frente ao qual o diretor se contentaria apenas em atender a este desejo. Em elenco de 15 atores, com a maior parte deles dobrando ou triplicando papéis, há acentuados desníveis nas atuações. E entre os personagens do triângulo amoroso, Sérgio Guizé sublinha o tom aparvalhado de Christian, Julia Carrera (Roxane) tem início hesitante, e um pouco mais empenhado ao final, e Bruce Gomlevsky, ainda que Cyrano não seja o personagem marcante de sua vida profissional, será, sem dúvida, mais um apontamento exploratório de sua trilha ascendente no palco.
Crítica/ Retorno ao Deserto
Exilados à procura do espaço de apropriação |
Para os exilados, nunca há pátria. Sejam tangidos por guerras, fome ou conflitos emocionais, os que deixam para trás por razões palpáveis a sua origem, lançam-se ao impalpável do vazio. Não há mais lugar para se estar, perdeu-se a geografia, física e afetiva, mergulhou-se no vácuo de um universo sem contornos, interferido pelo passado, mas sem realidade no presente e perspectiva de futuro. O verboso e poético dramaturgo de interioridades à margem, Bernard-Marie Koltès, que morreu em 1989, aos 40 anos, tem obra pequena, mas de intensidade dramática que se estabelece a partir da palavra como refração do detalhe. Em Retorno ao Deserto, em cartaz no Teatro Laura Alvim, Koltès se acerca de personagens banidos da Argélia natal, vivendo numa cidadezinha da província francesa, que se reencontram em encruzilhada de nacionalidades, que a guerra colonial torna ainda mais indistinta, e que a distância cultural aprofunda. A mulher que volta da Argélia para a casa que é sua por herança, ocupada pelo irmão que a divide com a mulher alcoólatra e empregados árabes, não chega a ser abrigo. Nenhum dos ocupantes desse teto provisório, tem qualquer sentido de permanência, a sua presença, interferida por sucessivo desgarrar, fica longe dali, aqui mesmo, mas fora de cada um. A guerra, como diz um dos personagens, é de menor importância, a verdadeira luta está naquilo que cada um pressente como desprendimento de um mapa afetivo sem contorno definido e chão para se fincar. Mas é preciso continuar buscando a terra, alguma terra, a existência precisa de um lugar para vicejar, nem que seja de volta de onde se partiu. Não é sem propósito que o texto se inicia com citação de Ricardo III, de Shakespeare: “Por que os galhos continuam crescendo, quando a raiz secou? Por que as folhas não secam, quando privadas de sua seiva?” Moacir Chaves conduziu essa batalha de irmãos por um espaço de apropriação, que se unem ao final por fastio de pertencimento, ao ritmo dos balanceamentos da escrita de Koltès. O diretor adota métrica interpretativa que conduz o elenco em tom recitativo e em correspondência aos seguidos monólogos reveladores dos personagens. Chaves coloca, habilmente, o entrecho e o drama em plano secundário, para trazer à frente o fluxo verbal e o movimento circular dos sentimentos incontidos pelo espaço emocional. Os atores – Ana Barroso, Andy Gercker, Catarina Abdalla, Diego Molina, Edson Cardoso, Elisa Pinheiro, Fernando Lopes Lima, Gabriel Gorosito, José Karini, Monica Biel e Peter Boos – em intensidades diversas, assumem a fala discursiva, quebrando com a necessidade de interpretar a psicologia dos personagens. O cenário de Sergio Marimba, com seus aramados, provoca relativa monotonia visual, que a iluminação de Aurélio de Simoni permeia com funcionalidade. A destacar a música de Tato Taborda.
Cenas Curtas
Este mês de junho registra impressionantes números na temporada teatral paulista. São mais de 150 espetáculos que disputam espectadores, com teatros ocupados com sessões apenas um dia por semana, alguns com duas, e maioria com três (sextas, sábados e domingos). Essa oferta mais do que generosa, se distribui por comédias (53), stand-ups (9), musicais (6), montagens cariocas (8), entre outras categorias.
O Rio, com números mais modestos (bem menos da metade da fartura paulista), está mostrando uma temporada mais equilibrada, não só na quantidade, como também na diversidade e qualidade das montagens. Tanto que um dos problemas que as produções estão enfrentando, é o da falta de casas de espetáculos que possam absorver essa produção crescente, o que obriga permanência curta em cartaz (três semanas com quatro sessões, na maioria das vezes, de quinta a domingo).
Com o fechamento do Delfin, Glória, Copacabana, Manchete, Arena, Galeria, BarraShopping, Barra, Mesbla, Santa Rosa e Serrador, não inteiramente compensado com a inauguração de alguns outros, como os teatros de shoppins, que foram construídos em razão de lei municipal, agora esquecida, a carência se agrava com a reforma necessária do Villa-Lobos. Mas há alguma esperança de melhora. A Funarte prevê a reabertura do Teatro Dulcina para agosto, enquanto a sobrevivência do Tereza Rachel parece assegurada com remodelação e nova administração.
O próximo mês de julho, promete muitas estréias, como a adaptação do romance de Rodrigo de Souza Leão, Todos os Cachorros São Azuis (dia 9 no Planetário), o musical noir Outside (dia 1° no Espaço Tom Jobim), mais um texto de Jean-Luc Lagarce, As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna. Para agosto (dia 4 no Teatro Maison de France) anuncia-se o musical Emilinha e Marlene – As Rainhas do Rádio, de Tereza Falcão, com Solange Badin, como Marlene, e Vanessa Gerbelli, como Emilinha. A produção, na venda dos ingressos, perguntará ao espectador a que torcida pertence: os marlenistas ficarão nas poltronas ímpares, e os emilinistas, nas pares.
O Que Há (de melhor) Para Ver
Imagem de uma saga de danações |
Crônica da Casa Assassinada – Nesta saga de danações, adaptada com a mesma densidade narrativa do romance de Lúcio Cardoso, o diretor Gabriel Villela revigora a sua imagística mineiro-mística com cenário arrebatador na reprodução de portal de igreja barroca e figurinos que envolvem os personagens em lençóis-mortalhas. Montagem de beleza rascante tem elenco que se harmoniza com vigor a esse culto à putrefação do prazer. Teatro Maison de France.
Um Violinista no Telhado – Baseado na cultura judaica, fixada no microcosmo de uma aldeia russa, no início do século XX, o musical ganha versão com igual rigor de realização que Charles Möeller e Cláudio Botelho têm mantido nas suas montagens. Com a mesma capacidade de selecionar os elencos, dos protagonistas às crianças, a dupla acerta, uma vez mais, no harmonioso e eficiente coletivo de atores, cantores e bailarinos e na ótima direção musical e na orquestra. Oi Casa Grande.
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