Crítica de A Lição e A Cantora Careca (1982)
A farsa na sala de visitas |
Como poucos autores no teatro contemporâneo, o romeno Eugène Ionesco utilizou o código verbal, especialmente aquele utilizado para a comunicação no cotidiano para demonstrar o vazio das relações humanas submetidas à rotina. As palavras revelam, na monotonia e na repetição em que são ditas, o esvaziamento do contato humano, reduzido a um ritual de formalidades, a um ato de convivência oco. Ionesco quando esteve no Brasil (em agosto de 1982) fazendo conferências, deixou clara a sua fidelidade a esse culto à palavra como aparência, e mostrou sua obstinação em explorar cada frase até as últimas conseqüências.
Em A Lição (1950), a aula particular entre a aluna que pretende o doutoramento total, e o professor, que tem dificuldades em ensinar-lhe as operações mais elementares, tudo sob a presença vigilante da governanta, os conceitos são expressos num jogo de palavras alucinatório. Cada frase tem uma réplica que acumula um equívoco, que é retomado pelo interlocutor que o devolve num moto contínuo que se prolonga por toda a duração da peça, interrompido apenas por um acontecimento inesperado no final. Já em A Cantora Careca (1949), o paroxismo das frases feitas e das situações constrangedoramente triviais é levado ao extremo da exploração vocabular, inclusive com a repetição de nomes e do jogo social, numa ambientação que reflete qualquer sala de visitas da classe média.
A consistência com que Ionesco explora a sua perseguição à palavra, de que A Lição e A Cantora Careca são exemplos irretocáveis, permite que se tenha uma boa perspectiva deste autor, cuja obra vista como um todo revela arraigada ligação com alguns valores estratificados. Mas com temperamento de um verdadeiro criador, Ionesco consegue transcender com a boa escrita e a qualidade de sua dramaturgia - especialmente nessas duas peças curtas – os compromissos com o ultrapassado. E Ionesco não tem o menor pudor em em reafirmar essas posições. Uma delas, que fez questão de expor minuciosamente na visita ao Rio, é a de que o diretor de qualquer de seus textos deve-lhe ser fiel. Não admite interpretações, extrapolações e invencionices, que ele considera fatores que obscurecem a obra. Luís de Lima, tradutor, diretor e introdutor de Ionesco no Brasil, como bom discípulo, respeita o mestre.
Nesse Espetáculo Ionesco mantém-se fiel ao espírito e à forma das duas peças que o compõe sem contudo abdicar de criação própria. O excesso de intimidade de Luís de Lima com a obra de Ionesco faz com que ele dirija o espetáculo com a facilidade da convivência de muitos anos. Nada tem mistério para Luís e o Espetáculo Ionesco flui com o ritmo e a maciez dos movimentos de uma cadeira de balanço. Em A Lição, essa intimidade é mais reveladora, já que tanto Luís, no papel do professor, quanto Camila Amado, no da aluna, viveram os mesmos personagens algumas vezes nos últimos 20 anos. Luís de Lima está à vontade, tirando de letra um papel ao qual sempre consegue acrescentar mais requintes. Camila Amado está ótima, com um tempo cômico que há muito ela não tinha oportunidade de exercitar. Ariel Coelho, com sua voz grave e presença bizarra, não acompanha com a mesma intensidade o dueto agitado e divertido do casal de atores.
Em A Cantora Careca, Luís de Lima soube acentuar o humor do texto, puxando a direção para o tom farsesco. E dentro desta linha, os atores se entregam com muita disposição, especialmente Tais Moniz Portinho, que não tem a menor dificuldade em se envolver com esta proposta. Ariel Coelho não consegue resolver tão bem seu papel, enquanto Luís de Lima carrega na mão, caricaturando um pouco demais. Sura Berditchevsky com seu rosto expressivo, marca bem a sua Mrs. Martin. Lupe Gigliotti está divertida como a empregada e Grande Otelo, como o bombeiro, prova que está para além da conceituação de ator. Otelo é uma personalidade, um temperamento de palco, difícil de ser classificado. Visivelmente com pouca intimidade com o texto, dá a volta por cima, superando a sua dificuldade em decorar uma longa fala, tirando um papel do bolso, que lê com muito humor. De tudo, Otelo sabe tirar um efeito teatral. Marcante.
O cenário de Gilberto Vigna (também assina os corretos figurinos) aproveita muito bem o palco do Teatro Delfin, além do que é bastante elegante na sua simplicidade (alguns biombos que têm o revestimento trocado de uma peça para outra).
Espetáculo Ionesco é uma recomendação sem erro, já que pertence àquela categoria de montagem a que estávamos desacostumados: correta e sem preocupações de mudar nada. Apenas de manter a atividade teatral no plano da informação cultural, divertindo com rigor profissional.
macksenr@gmail.com