A adaptação da obra de Fiodor Dostoiévski para o teatro é diretamente proporcional às dificuldades de reproduzir a grandiosidade de sua escrita. A aclimatação ao palco, nem sempre se faz sem tropeços e perdas diante das características da narrativa do autor russo e do seu caráter intrinsecamente literário. A versão teatral para a novela Um Coração Fraco, em cartaz no Teatro das Artes, reflete a admiração e o respeito que Domingos de Oliveira tem por Dostoievski e a perspectiva cênica que lhe confere a experiência de diretor. Não é fácil transpor a ambientação sufocante de uma Rússia afogada em pobreza com pequenas humanidades buscando sobreviver ao que as cercam e a si próprias. O personagem desta trama, um funcionário subalterno, vive o processo de enlouquecimento para quem a razão escapa frente a um mundo gelado à sua volta em contraponto ao calor sufocante dos seus sentimentos. Na mansarda em que vive com um amigo, esse homem, com insegurança sobre o seu lugar no mundo, deficiente no físico e nas emoções, se empenha numa tarefa que não consegue concluir, e que se saberá, é totalmente inútil. As relações de quem o cerca, amigo, noiva, chefe, são inconclusas experiências de um cotidiano de ressentimentos. Domingos se utiliza dos diálogos do original, e transforme duas personagens em narradoras, como forma de projetar a integridade do original. A diretora Priscilla Rozenbaum demonstrou a mesma sensibilidade do adaptador para o manuseio do material dramático, construindo atmosfera densa e poética. O cenário de Fernando Mello da Costa que se movimenta na rotação de um círculo, fixa os tempos. Sofia Torres e Isabel Guéron complementam com correção a dupla central. Cadú Fávero transmite a intensidade algo perplexa do amigo com justeza interpretativa sobre alguém incapaz de compreender a turbulência que se passa com o companheiro. Cadú estabelece forte contracena com Caio Blat, que desenha com minúcias e detalhes a escalada surda do burocrata em direção à loucura, numa atuação delicadamente filigranada.
Crítica/ Quanto Tempo da Vida Eu Levo Pra Ser Feliz
Uma determinada dramaturgia, atualmente bastante encenada, incorpora sob o seu aspecto mais convencional a influência da narrativa naturalista da televisão. Contar histórias ao abrigo das chaves do folhetim e do melodrama, tão caros às novelas, parece ter sido o que sensibilizou Silvio Guindane para escrever Quanto Tempo da Vida Levo Pra Ser Feliz, cartaz do Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil. O tratamento novelesco, ou de minissérie, o esquematismo dos personagens e as “mensagens” propostas pelo autor, configuram esse parentesco com a televisão. A rocambolesca trama reúne casal filhos de famílias desencontradas que se ligam através de um pai que se transfere de um núcleo a outro sem maiores nuances, e mães com graus mal dimensionados de neuroses. Passando por drogas, acidentes, separações, fanatismo religioso e mudanças improváveis, os personagens circulam por tantas trocas postiças que se tornam irreais, ao contrário do provável realismo imaginado pelo autor. Ao se modificarem tão inesperadamente, parece que esses tipos o fazem apenas para avançar a história, como nas novelas, que não têm qualquer realidade, seja psicológica ou de coesão narrativa. O diretor, que também é o autor, acreditou no texto, além do que era possível fazê-lo, e desenhou montagem naturalisticamente carregada, o que torna ainda mais fracionado tudo aquilo a que se assiste. As passagens de tempo, as transformações por que cada um dos personagens é submetido, os desvios em que é engolfado o entrecho, só acentuam a elaboração cênica precária. Isabel Guéron e Fernando Dolabella não conseguem dar veracidade aos dois jovens em conflitos tão pouco convincentes como os propostos pelo texto. Luiz Carlos de Moraes mantém interpretação linear, desconsiderando as eventuais transformações do pai. Ana Lúcia Torres e Denise Weinberg, atrizes mais experientes e de força expressiva consistente, não superam, pela dificuldade das personagens de arquitetura frágil, o vazio dos diálogos.
Crítica/ Coelho Branco Sobre Branco
Nada parece mais apropriado para esse texto e encenação de Alessandra Colasanti, em cena no Oi Futuro do Flamengo, do que esse título que reitera a ausência de cor. Mas desconfia-se que a pretensão da autora e diretora não tenha sido outra, a de se apropriar do título de um dos quadros do artista russo Kazimir Malevich (1878-1935), cultor da criação como forma pura, dissociada do naturalismo, sem referências à “objetividade” do real. É de se imaginar que Alessandra tenha partido desta premissa para construir a montagem, na qual propõe uma pequena história da humanidade, narrada como uma lição didática, e ilustrada por um coelho malabarista. Na primeira parte, temos a aula. Na segunda, o depoimento do ator com as implicações das dúvidas e dificuldades da prática artística. Fugir da linearidade, biografar o mundo, unir sentimentos e cotidiano parece ambição demasiada para apenas um espetáculo teatral. Tudo que se imagina com base para fundamentar a cena, ela própria acaba por desmenti-lo. Ao ambientar num circo, com direito à figura conotada do coelho, perde-se a dimensão da descoberta, cede-se à ação explicativa. Ainda que se justificasse a ambientação circense – frágil e contrária à impostação pretensiosa do texto – o ator que mimetiza as palavras em gestos repetitivos e pouco elaborados, acaba por derrubar qualquer efeito cênico, minimamente, envolvente. E quando, despido da fantasia de coelho, o mesmo ator se revela igualmente pouco inspirado no que diz e faz em cena. É possível até buscar as razões da autora/diretora, ao referenciar a montagem a uma teia de citações, mas é inevitável a decepcionante recepção que Coelho Sobre Branco provoca. Pedro Henrique Monteiro, vestido ou despido da figura leporídea, reitera com sua interpretação esse desencontro entre a forma e cor. Afinal, tudo se transforma num branco nivelador do tédio e, sob qualquer forma, o tédio se confirma descolorido.
Cenas curtas
William Shakespeare é presença imprescindível em qualquer temporada teatral. Em apenas dois meses, o teatro carioca já registra a ocupação de seus palcos com textos de e sobre o dramaturgo. Recém terminada no Parque Laje a exibição de Shakesparque, coletânea de cenas de algumas de suas peças, e R & J de Shakespeare – Juventude Interrompida, bem urdido pretexto para a encenação de Romeu e Julieta, continua em cartaz, agora no Teatro Carlos Gomes.
O Festival de Teatro de Curitiba abre a sua 20ª edição no final do mês com a encenação de Gabriel Villela para Ricardo III. O texto shakesperiano, produzido por grupo do interior do Rio Grande do Norte, foi filtrado pela estética de Villela, que incorporou a sua imagética mineira à tradição popular nordestina, surgindo desta fusão a possibilidade do diretor repetir a sua inesquecível montagem de Romeu e Julieta para o Galpão de Belo Horizonte nos anos 90. Esta versão recebeu o título de Sua Incelença, Ricardo III.
As Olimpíadas de 2012, em Londres, tem programação cultural paralela, que abrange variadas áreas da produção artística. No teatro, está definida mostra sobre Shakespeare, reunindo no Globe, o teatro reconstruído à imagem e semelhança do original, onde sua trupe se apresentava, grupos de várias partes do mundo. A participação brasileira contará com Romeu e Julieta, na montagem do Galpão, que assim volta ao mesmo Globe e com o mesmo espetáculo, visto na capital inglesa há 12 anos. E também com Ricardo III, com direção de Fábio Ferreira, que poderá ser visto no World Shakespeare Festival, produzido pela Royal Shakespeare Company.
Em 28 de setembro, estréia no Rio, a primeira tragédia de Shakespeare, vinda de Barcelona. O grupo La Fura dels Baus chega à cidade com uma antropofágica degustação de Titus Andronicus, incorporando com as suas virulentas imagens de confronto, a exposição de crimes e vinganças que se exibem na sanguinolenta narrativa. Neste ”ágape canibal”, em que a barbárie se mistura à gastronomia (o público é servido de um prato), a platéia, como já é praxe do grupo, se torna um ator a mais.
Além das boas traduções de suas peças disponíveis nas livrarias, Shakespeare tem seus sonetos e textos sobre sua obra e vida em catálogo. Sonetos de Shakespeare: Faça Você Mesmo (Editora Objetiva) traz versos traduzidos por atores, roteiristas, escritores, com seleção de Jorge Furtado e Lizian Kugland. E 1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare, do historiador americano James Shapiro, sobre os 12 meses daquele ano na vida e no mundo em que vivia o dramaturgo. Um livro fascinante sobre a Inglaterra da época e o cotidiano do escritor.
Até em filmes de animação para crianças, a obra de Shakepeare é inspiradora. Está em exibição nos cinemas o desenho Gnomeu e Julieta, baseado na tragédia do casal Montecchio e Capuletto, que nesta versão infantil foi transposta para um jardim inglês, em que gnomos decorativos, aqueles de gosto bem duvidoso, se digladiam, separados apenas por uma cerca. Até o próprio Shakespeare, em forma de estátua falante, participa da trama, que, evidentemente, é atenuada para que o casal de anões de jardim tenha um final feliz.
O que há (de melhor) para ver
In on It - Este exercício de decomposição narrativa é uma gingana de descobertas, na qual a trama se transforma no sujeito oculto de uma investigação amargamente lúdica. Frio e distante na aparente racionalidade, quente e pulsante no substrato da trama, a montagem de Enrique Diaz traduz esses contrastes com segurança. Fernando Eiras e Emílio de Mello mergulham nesta aventura narrativa com interpretações sensíveis. Teatro do Planetário.
Hair –A encenação de Möeller e Botelho para o musical dos anos 60 de Ragni, Rado e Macdermot, mantém a estrutura original, mas extrai do que se poderia considerar “de época”, a força dramática e a carga espetacular que o roteiro conserva de raiz. A perfeita adequação entre os tipos e personagens se completa pelo preparo técnico do elenco, prevalecendo a qualidade vocal, coreográfica e a unidade interpretativa de atores preparados para enfrentar a complexidade do que lhes é exigido. Oi Casa Grande.
R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida – O texto bem urdido, que transfere a representação da tragédia de Romeu e Julieta para grupo de alunos de colégio britânico, ganha ritmo intenso pela habilidade do diretor João Fonseca em estabelecer alta voltagem cênica, em que comédia e drama se equilibram. Outro trunfo é o quarteto de atores, que mantém a platéia presa às suas atuações, em especial Rodrigo Pandolfo, um jovem já com domínio de seus meios interpretativos. Teatro Carlos Gomes.
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