Crítica/ A Escola do Escândalo
Crônica do convívio maledicente |
O que esta comédia inglesa do século XVIII nos transmite hoje, ao ser encenada, traduzida e adaptada por Miguel Falabella, é a de constatar que a maledicência e a fofoca resistem ao tempo. E de que na Inglaterra da época do autor irlandês Richard B. Sheridan, o teatro era um veículo popular de diversão. Ao assistí-la no palco do Espaço Tom Jobim, percebe-se que o disse-me-disse e a bisbilhotice permanecem potencialmente vivos, mas será que levam a plateia ao riso e a provocar alguma relação nesses nossos tempos de exposições sem pudores? As possibilidades de atualização desta crônica de uma certa prática social se mostram um tanto restritas nesta atualização à cena da atualidade. Com diálogos que acentuam coscovilhices e má-língua numa trama em que se apontam falsas identidades e moralidades duvidosas, o espírito das comédias populares num enquadramento narrativo tradicional é o que parece ter atraído Miguel Falbella. Para o público se mostra uma escolha de difícil tradução pela previsibilidade do entrecho e da pouca elasticidade do humor de há três séculos transplantado para o tempero popularesco adotado pela direção. Produção bastante cuidada, com visual atraente, perceptível já à entrada da sala de espetáculos, com uma bela boca de cena . A cenografia de Lia Renha, com lustres e telão de fundo com desenhos que se modificam em seguidas projeções, e os figurinos de Emilia Duncan, com toques levemente caricatos, que comentam o caráter farsesco dos personagens, ilustram o amplo palco do Tom Jobim. A iluminação de Orlando Schaider e o coreográfico trabalho corporal de Marcia Rubin são outros dos atrativos da elaborada, ainda que um tanto frustrada, montagem. O elenco atua sob a indicação do humor direto, sem intermediações ou filtros. Ney Latorraca, depois do prológo hesitante, supera a tendência exibicionista como o comendador. Maria Padilha se desequibra entre o arrivismo da moça do interior e o tom choroso do arrependimento final. Guida Vianna tira partido da malícia da tia que desenrola a trama. Rita Elmôr e Edi Botelho sustentam seus papéis com composição física. Chico Tenreiro, com figurino que traduz em roupa o nome de seu personagem, faz um tipo caricatural. Bruno Garcia e Armando Babaioff se complementam como os irmãos. Bianca Comparato é a mocinha, e Jacqueline Laurence a senhora maldizente.
Crítica/ A Lição & A Cantora Careca
A linguagem como simulacro dos costumes |
Essas duas peças curtas do romeno Eugène Ionesco, estreadas no início dos anos 50, podem ser consideradas “clássicas”, seja historicamente, seja como fundadoras do que se convencionou classificar como “teatro do absurdo”. A volta a tais exemplares desta linha dramatúrgica deixa à mostra as qualidades dos textos e a permanência de seu efeito crítico sobre variadas convenções. Ionesco não fica na crítica à formalização de aspectos da vida social ou na reiteração da linguagem como simulacro dos costumes e das aparências. A linguagem, representada por diálogos que capturam a convivência estendida até à vizinhaça da banalidade, decompõe a lógica da linearidade. Em A Lição, o conhecimento não obedece à didática do acúmulo, mas à descompressão de sua eficácia. Em A Cantora Careca, o jogo social é subvertido pelas suas próprias regras restritivas. Os personagens não se comportam como prevêem as suas características exteriores. O professor recondiciona o saber para a aluna que o absorve como uma torrente de palavras. A família e as suas visitas não se reconhecem a si mesmas, apesar de os rituais de bem receber sejam o código que os identifica. Ionesco manipula os gêneros teatrais, como pudessem ser embrulhados nas sua própria gramática. Os elementos dramáticos introduzidos no desfecho de A Lição, e na boutade que se refere à cantora do título, talvez possam ser considerados, senão destoantes do corpo do texto, pelo menos sofreram algum desgaste com o tempo. Mas, tanto uma quanto outra, merecem o epíteto de “clássicas” pelo brilho dos diálogos e pelo aspecto definitivamente inovador de sua gênese. A direção conjunta de Camilla Amado e Delson Antunes não procura encorpar cenicamente as peças para além de suas rubricas, que chegam ao palco do Teatro Maison de France na íntegra. A dupla não avança qualquer invenção ou rota de fuga do que escreveu o autor, desenhando montagem fluente e bem acabada, sem tentar suavizar a sua verbosidade. (Há que lembrar que o espectador atual está cada vez mais impaciente para “ouvir”). É possível considerar que Nelson Xavier como o professor talvez pudesse imprimir mais autoridade ao que diz. Ou que o mesmo Xavier e Cecil Thiré, Thelma Reston, Renata Paschoal, Maria Gladys e Roberto Frota pautassem um pouco mais as suas interpretações como um exercício estilístico de humor. Mas o temperamento dos atores e a linha de atuação impressa pelos diretores conduziram o espetáculo para esses contornos. E por esta opção, cumprem-se o pretendido, afinal, Ionesco está em cena, sem retoques.
Cenas Curtas
Estréias de abril
Dia 1 – 45 Minutos – Monólogo escrito por Marcelo Pedreira, um dos autores da nova dramaturgia carioca, propõe o desafio ao ator Caco Ciocler de, sem uma trama ou personagem para se apoiar, entreter o público no exato tempo do título. Esse mote narrativo desenvolve as possibilidades da cena sem drama. A direção é de Roberto Alvim, um encenador cuja linha de trabalho está voltada ao teatro pós-dramático. Teatro Sesi.
Dia 1 – Um Dia Como os Outros, de Agnès Jaoui, e Cozinha e Dependências, de Jean-Pierre Bacri. – Em dias alternados, essas peças de autores franceses marcam a estréia da atriz Bianca Byington na direção. Leonardo Netto co-dirige. No elenco de ambas estão Kiko Mascarenhas, Leandro Castilho, Márcio Vito e Silvia Buarque. Analu Prestes participa apenas de Um Dia Como os Outros. Teatro Poeira.
Dia 2 – Ay, Carmela – O dramaturgo espanhol Jose Sanchis Sinisterra situa a ação durante a Guerra Civil quando dois atores são obrigados a montar espetáculo exaltando a trincheira fascista do confronto. Montagem paulista, dirigida por Marco Antônio Braz, estreou em São Paulo há quatro anos com os mesmos atores: Kiko Marques e Virgínia Buckowski. Sesc Rio Casa da Gávea.
Dia 7 – Tempo de Comédia – O inglês Alan Ayckbourn satiriza os bastidores da televisão, através do amor futurista entre um roteirista e uma atriz andróide. Esta produção paulista é assinada por Elaine Fonseca, com Julia Carrera, Eduardo Muniz, Arnaldo Marques, Cris Larin, Bia Borin, Gustavo Damasceno, André Frazzi, Lívia Guerra, Ricardo Ventura e Lívia Lisboa no elenco. Teatro Sesc Ginástico.
Dia 8 – Ninguém Falou Que Seria Fácil – O texto expõe as relações que se estabelecem entre dois atores (Felipe Rocha e Renato Linhares) e uma atriz (Stella Rabello) em disputa por atenção, carinho e espaço. A comédia de Felipe Rocha, com direção de Alex Cassal, é a segunda produção do grupo Foguetes Maravilha. Teatro Maria Clara Machado.
Dia 8 – A Dona do Fusca Laranja - A “performance-instalação que acontece dentro de um fusca” tem dramaturgia de Jô Bilac e direção de Fábio Ferreira. A atriz Camila Rhodi, que reproduz no palco fato ocorrido no seu cotidiano, dialoga em cena com várias linguagens expressivas, e circula de carro pela cidade com três espectadores, antes do início do espetáculo no teatro. Oi Futuro Flamengo.
Dia 14 – Memória da Cana – A consagrada adaptação de Newton Moreno de Álbum de Família, de Nelson Rodrigues para o universo pernambucano da obra de Gilberto Freyre chega ao Rio, depois de participar, com êxito, de vários festivais e de longa temporada em São Paulo. A montagem comemora os 10 anos de fundação do grupo Os Fofos Encenam, liderado por Moreno. Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil.
Dia 15 – Murro em Ponta de Faca – Escrita em 1971 por Augusto Boal, o texto reflete a dramaturgia de intervenção da época que investia contra a ditadura vigente. Com produção e atores de Curitiba, a encenação é assinada por Paulo José, o mesmo diretor da primeira versão. Espaço Sesc.
Dia 15 – A Estupidez – Texto do argentino Rafael Spregeburd faz crítica ácida sobre a estupidez humana. A montagem do grupo Os Dezequilibrados tem direção de Ivan Sugahara e Cristina Flores, José Karini, Letícia Inard e Saulo Rodrigues no elenco. Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil.
Dia 19 - A Olho Nu – Com texto e direção de Duda Gorter, essa tragicomédia interpretada por Rose Abdallah e Alexandre Dantas, lança a pergunta: Como lidar com uma situação-limite? Para respondê-la, Duda Gorter afirma “procurar o ridículo como teatralidade”. Teatro dos Quatro.
Dia 19 – Negro Relâmpago Perpetuamente Livre - Diálogo poético entre Pablo Neruda e Federico Garcia Lorca que ecoa os anos que compartilharam boêmia, confidências afetivas, arte e política. Escrita e dirigida por Claudio Castro Filho e com interpretação de Claudio Serra, a montagem do Teatro do Acúmulo “investiga as relações entre o ator e o sistema de objetos, buscando (…)o espetáculo-poema”. Espaço Sesc
O que há (de melhor) para ver
As centenárias – Agora em um palco bem mais amplo do que o da estréia há três anos no Teatro Poeira, a dupla de carpideiras, criada por Newton Moreno, vive o embate com a morte na tentativa de driblá-la. As duas se utilizam de artifícios para tentar, com astúcia e esperteza, se desviarem da inevitabilidade da ameaça onipresente, percorrendo rituais do fantástico sertanejo. Marieta Severo e Andréa Beltrão mergulham no universo nordestino como as carpideiras com movimentação corporal e detalhamento vocal, que se estende da juventude à senilidade. Interpretações inteligentes e comunicativas em encenação que emoldura a cultura popular sem folclorizações. Teatro João Caetano.
Hair – A encenação de Möeller e Botelho para o musical dos anos 60 de Ragni, Rado e Macdermont mantém a estrutura original, mas extrai do que se poderia considerar “de época”, a força dramática e a carga espetacular que o roteiro conserva de raiz. A perfeita adequação entre os tipos e personagens se completa pelo preparo técnico do elenco, prevalecendo a qualidade vocal, coreográfica e a unidade interpretativa de atores preparados para enfrentar a complexidade do que lhes é exigido. Oi Casa Grande.
Romeu e Julieta em sala de aula |
R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida – O texto bem urdido, que transfere a representação da tragédia de Romeu e Julieta para grupo de alunos de colégio britânico, ganha ritmo intenso pela habilidade do diretor João Fonseca em estabelecer alta voltagem cênica, em que comédia e drama se equilibram. Outro trunfo é o quarteto de atores, que mantém a platéia presa às suas atuações, em especial Rodrigo Pandolfo, um jovem já com domínio de seus meios interpretativos. Teatro Carlos Gomes.