quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (24/2/2016)
Crítica/ “Macbeth”
A tragédia mostrada de frente
A complexidade de “Macbeth“ está nos significados que possam ser atribuídos aos atos de personagens e na forma como o texto de Shakespeare é encenado. Traduzir a compreensão, ou a visão, de como o poder se transforma em um corpo que adquire vida e corrói as veias que fazem circular o sangue da ambição, não deixa de ser um desafio fascinante.  “Macbeth” faz um corte profundo na ambição como um processo transfigurado pelo medo e o remorso, mas que, ao se instalar, adquire razão própria que movimenta a engrenagem de sua perpetuação. Tragédia em que o mal se transforma em fúria e em que o destino do homem, mais do que do rei, se deixa conduzir pelo desdobramento de um ato, penetra zonas de sombra para que se perceba o esfacelamento da máquina do mundo. Macbeth assassina o sono, que se esconde, a princípio, no remorso, mas que se transforma em vigília, para assegurar a conquista. Lady, artífice do primeiro assassinato, invoca o mal e se torna sonâmbula na consciência da sua desumanidade. Na tragédia de Shakespeare, repleta de imagens manchadas de humanidade sangrenta, os diretores buscam estabelecer poética cênica que encontre a voracidade abissal das palavras que tocam as pulsões e impulsos do homem de modo arrebatador. Transpor esse arrebatamento para teatralidade contemporânea, instiga os encenadores. Ron Daniels, o brasileiro Ronaldo Daniel, um dos fundadores do Teatro Oficina e, por décadas, diretor artístico de companhias shakespearianas inglesas, volta ao Brasil para encenar “Macbeth”, três anos depois de “Hamlet”, com o mesmo Thiago Lacerda. Já na montagem anterior, Daniels/Daniel se empenhava em clarificar a tragédia, não de modo reducionista ou inovador, mas em linha contínua entre ação e palavra. Na tradução do diretor e de Marcos Daud está impressa a vontade de impulsionar os fatos com tensão narrada, como uma história explícita que traz a voz para frente da cena e a imagem para a retaguarda do é dito. Por mais que a essência da tragédia esteja preservada, o seu desenrolar  se contrai em cenas voltadas para a plateia, como uma informação, que não se detém em minúcias, apenas em capturar a atenção. Aponta-se para um sentido mais expositivo, no qual o elenco deixa a sensação de atuação cumprida.  A construção dos meandros da escalada ao poder e o descenso até ao impossibilidade de sua manutenção se transformam numa sucessão de quadros que ganham velocidade que não permite destacar-lhes as facetas. A versão de Daniels trata a tragédia na sua frontalidade, como uma tela que projeta pouca cor e volume. O elenco, pelo estilo franco que lhe é imposto, está ajustado aos temperamentos dos interpretes. Sylvio Zilber se destaca pela voz impostada. Lourival Prudêncio pela facilidade para o humor. Marco Antônio Pâmio e Marcos Suchara pelo esforço em ampliar suas presenças. Ana Kutner e Luiza Thiré por confinarem-se nos limites dos papéis. André Hendges, Fábio Takeo, Felipe Martins, Rafael Losso e Stella de Paula pelas agilidade das suas intervenções., Thiago Lacerda é um Macbeth dedicado a não deixar que fique obscuro o que envolve a ambição. Detalha a palavra com sincera posse do seu significado, mas com linearidade, julgando, deste modo, melhor explicitá-la. Giula Gam assume postura hierática com fulgurante figurino e movimentos corporais insinuantes.   

           

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (21/2/2016)

Crítica/ “Caesar – como construir um Império”
Em busca do espaço de enunciar dissonâncias


A encenação de Roberto Alvim submete a tragédia de Shakespeare a fragmentos de vozes que se sobrepõem na construção de sonoridade política que ecoa razões humanas, silenciadas pelo juízo inconstante de suas motivações. Brutus justifica o assassinato de César por suposta ameaça à democracia. Marco Antônio ao assumir o poder, estigmatiza Brutus que se exila, e em crise de consciência, mata-se. Ao contrário de reproduzir os conflitos desenvolvidos pela ação, o diretor concentra-se nos ruídos das falas que, em ondas subterrâneas e impulsos velados, alcançam os embates para além da historicidade da superfície. São camadas do discurso que convergem para a audição de intensidade variada e para o olhar de foco na penumbra. Os dois atores em cena são menos os personagens na tentativa de tornar física a palavra como expressão de verdades manipuladas por certezas duvidosas e pelo esfacelamento da dimensão humana da política. Tanto que ambos se revezam nos papéis, construindo monólogo único que é o cenário abstrato para as situações concretas. O que cada um diz, representa formas de argumentação e justificativa para seus atos, sem que se lhe atribuam determinada carga dramática. A adaptação e direção de Alvim se apoiam em uma cena fria e sem emoção, que concentra, num quadrilátero com o piso recoberto por moedas e delimitado por luzes retilíneas de neon, o espaço de enunciar e de expor dissonâncias. A ambientação em meia luz, sempre em busca do escuro, complementa, entre                  tons sussurrantes e pequenas elevações de voz, o cenário para a música, rascante e visceralmente integrada à narrativa, de Vladimir Safatle. A dupla de atores sustenta o sentido trágico das palavras, tateando seus contornos poéticos e eloquentes com vigor e contenção. Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia projetam desenho corporal em que a rigidez serve à solenidade ritualística, e as falas em nuança, a justificar o furor da razão. Na última cena, a do suicídio de Brutus, o encontro dos intérpretes traduz, com impacto visual e tensão rarefeita, os inevitáveis conflitos no exercício do poder. “Caesar –como construir um Império” é um espetáculo em contraluz e murmúrios, de beleza áspera, que propõe, a quem tenha disponibilidade à escuta, o jogo cético da política e as dubiedades  do comportamento niilista do indivíduo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (17/2/2016)

Crítica/ “O último lutador”
Novelão de luta livre
O tema central do texto de Marcos Nauer e Teresa Frota é, apenas aparentemente, a luta livre. Um velho pugilista, pai de dois filhos, também lutadores, os transforma em adversários no ringue e na vida, marcados por mágoas e ressentimentos desde que foram separados ao longo dos anos. O patriarca, hoje um empresário empobrecido de rinhas de galo e a beira da morte, decide aproximar os netos, desconhecidos entre si e afastados pelos conflitos familiares inconciliáveis dos pais, para disputa definitiva. Até chegar ao round decisivo, em que todos lutam por recompensa financeira, briga-se por esconder identidades, abater sentimentos, alternar atitudes e nocautear os embates emocionais. Com a ação localizada na era Collor e com discutíveis ganchos que dispensam a falsa tensão e arranham o melodramático, a narrativa acumula situações que se arrastam por um tempo dramático descompassado e se desdobram em tramas soltas do eixo central. Há uma indisfarçável vizinhança com a produção ficcional para a televisão, com excesso de acontecimentos que se atropelam para sustentar a atenção e personagens demais para apoiar os estratagemas dialogados. A impressão é a de que “O último lutador” foi baseado em argumento (ou sinopse, na linguagem da televisão), desenvolvido como capítulos em que cabem menos história do que podem tornar verossímeis personagens tão esquemáticos. Recursos como concursos de tv que ajudam a avançar a trama se repetem nos segredos antecipadamente descobertos ou na revelação de que “os brutos também amam”. Sergio Módena administrou a cena como um artesão que põe os instrumentos bem arrumados na bancada de trabalho. O cenário de Aurora dos Campos utiliza tela de galinheiro como enquadramento para o palco-ringue, em alusão à profissão do ex-pugilista. A iluminação de Tomás Ribas procurar tira partido dessa teia tramada, enquanto Milton Vieira e Paulo Oliveira demonstram, como instrutores de luta, a eficiente preparação dos atores para as cenas de pugilato. A combinação desse urdido    encaixe, permite que se atenue as fragilidades e as lembranças novelescas que assaltam, sem tréguas, o texto. O elenco, em atuações instáveis, acompanha a vulnerabilidade e o desequilíbrio dos personagens. Carol Loback e Mari Saade ressaltam ainda mais a precariedade dos tipos que interpretam. Glaucio Gomes e Antonio Gonzales tentam não sucumbir a implausível irmandade. Marcos Nauer, com melhor presença, e Daniel Villas, em tom linear, se destacam ao partir para a briga. Stela Freitas procura imprimir alguma função e consistência à acompanhante do patriarca doente. Stênio Garcia interpreta o decadente boxeador sem particularizar qualquer das suas características, já bastante limitadas pela própria natureza da sua má construção.      


sábado, 13 de fevereiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (13/2/2016)

Crítica“Missa para Clarice”
A celebração da palavra sacralizada

A seleção de textos de Clarice Lispector, reunidos sob a forma de missa por Eduardo Wotzik, sacraliza o humano como comunhão de sentimentos levados ao infinito de seus mistérios. Neste estudo cênico, em que a palavra é reza de “susto e angústia” e a voz, meditação sobre a verdade para além do escuro, o ator celebra, com duas acólitas e música de Gorecki, as dúvidas que assaltam a autora e inquietam o diretor. O ritual místico de que se apropria o literário profano procura na oração que eleve, no templo do palco, a consciência de viver. A edição, texto final, direção e interpretação de Eduardo Wotzik ambicionam capturar na obra de Clarice o sagrado da existência em sua conflitante e mútua negação. Refletem ainda a ansiedade de encontrar na criação, possibilidades de não sucumbir a fatalidade dos sobressaltos e as alegrias sem pudor dos desejos. A encenação indica, na adoção genuína das incertezas, a tentativa de especular por respostas e investigar os espantos. Com estrutura da missa católica, a envolvência da plateia na cerimônia teatral segue os rituais religiosos, com quebras narrativas que equilibram o tom solene da sequência formal. As atrizes Cristina Rudolph e Natally do Ó são as responsáveis por essas intervenções, que buscam aproximar, com alguma artificialidade, o espectador do fiel. A direção de arte de Analu Prestes, e especialmente a iluminação dos irmãos Mantovani, criam ambiência de culto na sugestão das vestimentas religiosas e na evocação da luminosidade de imagens sacras. Na sua liturgia teatral,  Wotzik não economiza no aproveitamento do material selecionado, usando de fragmentos de contos e crônicas e de narrativas curtas, em triagem mais emotiva do que dramática. Muito do que assiste, parece se confundir com o depoimento pessoal do ator sobre o ato de estar em cena neste impreciso momento do teatro. A necessidade de explorar uma certa inadequação, a que os textos se referem, é exposta num caudal que não permite ajustá-lo ao tempo cênico. Não por outra razão que o final ameaça se completar várias vezes para, efetivamente, se concluir pela simples saída do ator de cena. Mas é a mesma identidade que Eduardo Wotzik estabelece com a fecundidade da obra de Clarice, a  maior força expressiva deste estudo-missa. O intérprete se mostra um devoto da palavra escrita, percorrendo os escaninhos das intenções e os meandros dos enigmas, distante de ênfases e da espiritualidade efusiva. Com atuação sincera, conduz, reflexivamente, a pregação da escritora pelo sagrado da descrença.                                                       

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Temporada 2016

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (10/2/2016)

Crítica/ “Master class”
A intérprete revestida de diva


Terrence McNally demonstra em “Master class” ser um artesão que manipula com habilidade os elementos para construir narrativa com verniz de bom acabamento e pontaria certeira para truques teatrais. A aulas da cantora Maria Callas na Juilliard School de Nova York para alunos avançados, no início de década de 1970, se transformam em material dramático para biografar a artista em fase descendente e a mulher em estado depressivo. Em costura alinhavada de informações da carreira, de traços de temperamento e de fragilidade afetiva, o autor condensa os dados factuais, relacionando-os a árias de ópera que marcaram sua trajetória. Ainda que não seja um monólogo, a atriz que interpreta Callas domina a cena, tornando circunstancial e acessória a presença dos alunos, escadas para o brilho da figura central. McNally demonstra ser cultor da diva, mas que para além da admiração pela soprano, retrata suas carências e desajustes na vida amorosa e a competição com cantoras líricas que ameaçavam sua confiança. O texto se assemelha a reportagem de revista de celebridades, contando detalhes da intimidade, ao mesmo tempo ressaltando as qualidades artísticas, sem ultrapassar o limite da exposição cuidadosa. Cada cena adquire a carga bem dosada que o autor deseja emprestar-lhe. A introdução do trecho de “Medea”, cantada em gravação da própria Maria Callas, é a trilha da dor da sua separação do armador grego Aristóteles Onassis. O caráter irascível e irônico de suas observações é contrabalançado pela exposição das dificuldades da origem e do exercício da disciplina. O diretor José Possi Neto não acreditou muito na forma didática com que McNally apresenta a história, recorrendo a vídeo na abertura que conta em detalhe as passagens da vida da Callas. E para esclarecer dúvidas, o programa do espetáculo traz glossário que relaciona nomes (de Anna Magnani e Gina Lollobrigida a Joan Sutherland a Renata Tebaldi) e óperas (“Norma”, “Tosca”). A montagem se cerca desses apoios como pontos reiterativos de encenação que desconfia de seu alcance e eco na plateia. A narrativa, um tanto repetitiva e ameaçada de quebra de ritmo, é conduzida por Possi como depoimento cênico para celebrar intérprete revivendo diva. E investe neste encontro como o eixo da direção. A cenografia de Renato Theobaldo cria teia branca que, em posição distorcida, desenha sugestiva imagem abstrata. A iluminação de Wagner Freire colore esse painel de fundo. Os figurinos de Fabio Namatame e Claudeteedeca são adequados para Callas e caricaturais para os demais personagens. Juliana Daud, Bianca Tadini, Leandro Lacava e Thiago Rodrigues demonstram melhor capacidade como cantores do que como atores. Com participações restritas a papéis inexpressivos, o elenco de apoio cumpre com disciplina suas funções. Christiane Torloni mantém-se integrada e fiel a composição bem delineada de pequenas modulações para uma Maria Callas de contornos mais acurados e menos histriônicos. A atuação de Christiane Torloni reveste “Master class” de aula de entretenimento.