segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Festivais


Porto Alegre em Cena

Uma Mostra de Fôlego 

Mímico da interminável pantomima da existência
Mais do que um festival de teatro de longa duração – são 18 edições e quase um mês de apresentações a cada ano – o Porto Alegre em Cena tem em seu acervo de programação, o cadastro de montagens dos nomes internacionais mais fulgurantes do século passado. Já estiveram em palcos da capital gaúcha, a fundamental Pina Bausch, o vigoroso lituano Eimuntas      Nekrosius, os grupos La Fura Del Baus, Volksbüne Theater e El Periférico de Objetos, os encenadores Robert Lepage, os argentinos Rafael Snegelburd e Daniel Veronese, além de ser responsável pela vinda pela primeira vez ao Brasil do Thêàtre du Soleil (2007). Neste ano, tanto Peter Brook, com a A Flauta Mágica, pela quarta vez, e Bob Wilson, com A Última Gravação de Krapp, pela terceira vez, voltam a Porto Alegre com suas montagens mais recentes. A qualidade que o Poa em Cena atingiu em quase 20 anos, permite que tenha autoridade para convidar grandes nomes que aceitam participar da mostra, e apenas dela, sem nenhuma extensão no país e no continente, como agora com a vinda de Bob Wilson.
Nesta volta,  Bob Wilson retoma Samuel Beckett – ano passado trouxe Dias Felizes. É um Wilson, fisicamente pesado, com aparência que registra marcas do tempo, e que parece encontrar na sucessão de espetáculos beckettianos, razões em si mesmo que justifiquem tal insistência. E se lembrarmos que este Krapp é interpretado pelo próprio diretor, a duplicidade de funções avizinha o velho personagem do homem de 70 anos.  Há sempre algo de devastador e pessoal nos textos de Samuel Beckett, mesmo quando os sentimentos e as lembranças invadem a contínua exploração da palavra como reafirmação de que já não há mais nada a dizer. Até mesmo quando o humor se infiltra por esses despojos, um pouco antes ou logo depois de fins, Beckett não abandona a zona de sombras de vidas que ficaram no passado e sempre foram vividas com a consciência das fintudes e da inescapável incapacidade de transpor a certeza de permanentes impossibilidades. Não há na dramaturgia beckettiana áreas de escape, o mergulho  é em direção ao escuro, à exumação de existências perdidas à partida, de volta a um ponto inicial que não tem chegada. Existir só é possível na contínua repetição do ato de viver, as vozes ou o silêncio prolongam o que já se deixou de escutar e a projeção da fala ou da mudez se transforma em pantomima indefinida. É a partir desta pantomina que Bob Wilson lança silêncios e ruídos à assepsia de sua arquitetura cênica fria e de traços secos. Como um Marcel Marceau pós-dramático, o ator-diretor de rosto pintado de branco, luvas cirúrgicas e movimentos e máscara expandidos, se transigura de mímico niilista, de funâmbulo de imagens derrisórias e de emoções incertas. Bob Wilson não será o melhor ator do mundo, mas sua encenação é fiel à estética teatral em que o intérprete é a marionete-pertormer da interminável pantomina da existência
É quase praxe em festivais de teatro internacionais, a presença de algum espetáculo exótico, que traga a curiosidade de qualquer etnia cultural. Nesta edição, o Poa em Cena elegeu como sua cota, a versão de Medéia na direção de um francês, com atores de Burkina Faso. A tragédia de Eurípides ganha ecos de cânticos e artesanato tribal, com coro formando por mulheres que entoam, em imemoriais sons, o caminho da vingança de Medéia. A intervenção do diretor sobre o elenco de um país de colonização francesa, se ativa no paralelismo entre a poética da palavra clássica e a força verbal de uma língua desconhecida que se corporifica, dramaticamente, em sons ritualísticos e nenhum folclorismo. O peso das palavras ancestrais e a ressonância trágica de vozes misteriosas, reforçam a imortalidade de tribos gregas ou africanas, a totalidade do nada.  A atriz de Medéia se apropria da palavra com segurança e o coro evolui em crescente tensão. Antes de ser um exotismo exibicionista, a Medéia de Burkina Faso é tão reveladora quanto as potencialidades de teatralidade africana.    
Na trilha dos festivais nacionais, que nos têm apresentado o novo teatro argentino, Dolor Exquisito ganha passaporte para se integrar à corrente de investigação na qual se diversifica a cena do país vizinho. Esse exemplar, talvez não seja o mais expressivo de quaisquer das tendências já vistas, mas é uma proposta interessante. O texto da francesa Sophie Calle é, no mínimo, engenhoso no tratamento da narrativa, ao descrever 90 razões pelas quais a personagem contabiliza uma dor de amor, e outras tantas pelas quais se desprende dela. A atriz oscila através da evolução e involução dos sentimentos de dolorida ascensão ao libertário descenso. A direção de Emílio Garcia Webbi, responsável pelo prestigiado grupo argentino El Periférico de Objetos, segue adaptação um tanto sobrecarregada de atalhos, que resulta dispersa. Com alguns bons momentos, Dolor Exquisito  conta com Maricel Alvarez, atriz dotada de recursos, que trilha as emoções da personagem com fina e caricata ironia. Espetáculo com grife modernosa, carece, no entanto, de ambicionar um pouco mais do que embalagem cuidada de crônica de uma dor de cotovelo.         
O panorama do teatro brasileiro está sendo traçado, desde a primeira edição, em 1994 do festival, com a exibição do que a cena nacional produz. Este ano, uma vez mais, aponta para vertentes instigantes do teatro atual. E um dos exemplares desta visão curatorial é o grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz, que apresentou Viúvas, criação coletiva que se cercou de ambientação bastante peculiar. Com o subtítulo de “performance sobre a ausência”, o coletivo utiliza texto do chileno Ariel Dorfman que trata sobre questões relacionadas às ditaduras latino-americanas da segunda metade do século passado. A encenação se inicia com o transporte até um cais, onde se embarca em pequena traineira até a uma ilha abandonada, que guarda as ruínas de um presídio. Esse translado e o cenário natural condicionam o espetáculo, buscando envolvência que, desconfia-se, o texto por si só não sustentaria em montagem mais convencional. Esse arcabouço procura ampliar a dimensão da dramaturgia, mas não camufla o seu envelhecimento. Numa proposta muita próxima dos primeiros espetáculos do grupo A Vertigem, o Nóis constrói roteiro em meio aos despojos arquitetônicos de prédios que tiveram funções bem definidas no passado, para encorpá-los com dramática que lhe emprestaria significado retirado de sua origem. Algumas cenas até adquirem impacto visual, aproveitando-se do entorno oferecido pelo rio Guaíba e reforçado pela beleza de um pátio arruinado com o mato invadindo os espaços abandonados, e pela contundência das antigas celas, carregadas de memórias. Com toda essa moldura, e pela  dramaticidade enfática, a essência da cena se perde no maniqueísmo do texto  e na indefinida e  extemporânea  agit-prop  da encenação.       
A inclusão de Os Credores, do sueco August Strindberg, do grupo Tapa na grade de programação, ratifica por parte da curadoria a pluralidade de suas escolhas. Mantendo a linha de encenar textos, em que a palavra é a força maior da cena e sua valorização como elemento dramático, Eduardo Tolentino é coerente com sua trajetória de encenador. Em mais uma investida em texto difícil, do século XIX, o diretor enfrenta o desafio de equiparar os tempos narrativos das convenções de dramaturgia histórica aos códigos da linguagem contemporânea. Em Os Credores, Tolentino explora o jogo de relações de um trio, em que a construção de uma vingança, desestabiliza cada um dos seus integrantes. A dissimulação das regras, deixa à mostra crise existencial das peças do quebra-cabeças que não se encaixam. Com diálogos exploratórios dessa desintegração emocional, Strindberg é impiedoso com a mulher, eixo que desequilibra e incapacita emocionalmente  homens, fracos. Encenação rigorosa, que persegue o detalhe, a minúcia e a imagem precisa (a escultura de gelo é de primorosa resignificação simbólica), tem nos três atores a expressão viva desses cuidados do diretor. Para os intérpretes, Os Credores é um exercício estilístico, talvez mais ajustado a atores com domínio técnico e menos emocionais. Ainda assim, José Roberto Jardim incorpora com sensibilidade a fraqueza e a hesitação do marido afetivamente imobilizado. Sandra Corveloni transita entre a atração e repulsa que a personagem experimenta em si e provoca nos outros. Apenas Sergio Mastropasqua, em que pese voz poderosa e autoritariamente adequada ao personagem, pelo menos nas intervenções iniciais, não projeta a complexidade dos seus ardis, banalizando seu alcance.   
      
                                                            macksenr@gmail.com