Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (17/5/2017)
Crítica/ “Perdoa
por me traíres”
Nelson Rodrigues para além de datas e históricos |
Em 1957, quando Nelson Rodrigues escreveu
“Perdoa-me por me traíres”, confirmou suas obsessões dramatúrgicas nesta
“tragédia de costumes em três atos”. Seis décadas depois, a definição do autor
está um tanto modificada pelo tempo, como está abandonada a sua divisão em
atos. O que na época precisava ser chamado de trágico para abafar os maus
costumes que provocavam escândalo, hoje é visto sob a perspectiva da
integridade de uma obra, coerente com a dramaticidade arquetípica do desejo.
Colegiais e prostituição, aborto e fantasia sexual, assassinato e pedofilia são
os elementos que impulsionam a narrativa, que desvenda em truques folhetinescos
a exacerbação do patético. O diretor contemporâneo que se debruça sobre o texto
e busca ultrapassar o registro de datas e históricos, encontrará o desafio de não
ceder à originalidade a qualquer custo e efeitos. Daniel Herz não cedeu. A sua
montagem padroniza em quadro cinzento e acrítico as efusões de sentimentos e condiciona
os diálogos à sua extensão tragicômica. O diretor não se impõe pela recusa a
acatar a perda de viço da trama, mas a defender suas pulsões com visão passional,
suavizada por esteticismo limpo. A cenografia de Fernando Mello da Costa, com
suas persianas que deixam entrever o encoberto, é explorada pela iluminação de
Aurélio de Simoni, ambientada pelo discreto figurino de Antônio Guedes. A
contenção visual e a desidratação cênica de algum exagero novelesco, provocam,
tanto o interesse da plateia pelo desenrolar da trama, quanto consegue momentos
de riso espontâneo para situações artificiosas. A unidade do elenco é
conseguida por interpretações que se harmonizam por linha exploratória entre a tonalidade
melodramática e o humor sugestivo. Bebel Ambrósio (Nair) e Clarissa Kahane
(Glorinha) investem na sensualidade das colegiais. Wendell Bendelack desempenha,
para além da tipificação, o travesti Pola Negri. João Marcelo Pallotino
(Gilberto) deixa escapar a mudança do marido ciumento, desperdiçando a carga contida
na frase do título. Bob Neri (Jubileu de Almeida) é um perfeito deputado
rodriguiano. Tatiana Infante (Madame Luba) se apoia no sotaque carregado da
cafetina. Rose Lima (Tia Odete) não tem a presença e o ar ausente exigidos pela
mulher que vaga pela casa, e que deveria dar maior consistência à última fala.
Gabriela Rosas (Judite) expõe a dubiedade da mulher cujo marido pede perdão por
ela traí-lo. Ernani Moraes (Tio Raul) menos sanguíneo do que em outras atuações,
conduz o personagens com furor controlado.