Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (10/3/20170
Crítica/ “Gisberta”
Gisberto era seu nome verdadeiro, que seria
Gisberta quando assumiu o papel de travesti. Suas inquietações e as hostilidades
que a ameaçavam nas boates e ruas paulistanas a levariam a Portugal, onde foi
cruelmente assassinada. A história real deste garoto que deixou a família, aos
18 anos no final da década de 1970, para viver de shows e drogas na cidade do
Porto, se estende por depressão e aids, e termina com a morte, com o corpo
jogado no poço de um prédio abandonado. O texto de Rafael Souza-Ribeiro constrói,
biograficamente, as transformações e vivências de alguém que, desde a infância,
convive com a inadequação de gênero, e que sobrevive mal a um roteiro que lhe é
imposto pelos preconceitos e cumprido em reação autodestrutiva. A narrativa é
minuciosa na origem familiar e na construção da nova imagem identitária,
detalhista no desenho de um certo ambiente gay e contundente no ato final.
Descritiva, sem projetá-la em perspectiva, a dramaturgia se fraciona e alonga
na sequência de pequenos acontecimentos, descaracterizados e em frágil
contexto. As quebras de tensão dramática se mostram desequilibradas, como nas
rápidas pausas da irmã para verificar o assado na cozinha. A imagem nunca
mostrada de Gisberta, se mantém oculta como o mistério pessoal que as suas cartas
enviados do Porto não revelam. O caráter crítico e emocional, pretendido pelo
autor, se consolida na leitura da sentença do juiz ao declarar as penas dos
meninos assassinos, de 14 a 16 anos, e na descrição jornalística dos
antecedentes e da atuação dos menores. O tecnicismo jurídico e as
condicionantes sociais da vítima e dos infratores
se desnudam com nitidez e ampliam a percepção de um quadro amplo em restam a travestis
e a meninos abandonados a condenação dos excluídos. A sobriedade cinza da
cenografia de Mina Quental, o figurino de formas recortadas de Gilda Midani e a
trilha sonora e música original de Lúcio Zandonati balizam na linearidade do
monólogo a direção de Renato Carrera. O ator Luis Lobianco permanece no plano
da narração, como se configurasse o percurso de Gisberta como leitura
dramática.