Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (4/5/2016)
Crítica/ "Garrincha"
Um ídolo popular empacotado por linha de montagem luxuosa |
Em “Garrincha”, Bob Wilson não foi menos Bob
Wilson por abordar um personagem brasileiro. Mas a nacionalidade deglute mal o
que lhe é servido como um prato cultural pronto e frio. Os efeitos de luzes e a
pasteurização dos movimentos estão em cena, assim como a descontinuidade
narrativa e a sequência de cenas como quadros vivos. Os cortes marcados por
cliques sonoros e as palavras silabadas para esvaziá-las de qualquer emoção, se
mantêm intactos. A compartimentação da trama, apenas sugerida, fica congelada
em imagens que mais fixam do que desvendam. Os efeitos visuais e sonoros se
repetem como expressão de uma dramaturgia cênica cada vez mais associada ao
estilo de uma grife. Mané Garrincha, por qualquer das perspectivas que o artista
americano o abordasse, escaparia como personagem do design que o aprisiona em
gaiola ascética, bem diferente daquelas em que criava seus passarinhos em Pau
Grande. Suas pernas tortas e improváveis
dribles não se ajustam à coreografia rígida de um balé de estética congelada.
Os acidentes pessoais e o amor embriagador deixam de ser histórias para se
desfazerem em simbologia de aparência. A casa interiorana, de onde o jogador sai para o mundo, e a trilha com trechos do
Repórter Esso e jingles publicitários da década de 60/70 se desfazem na
arquitetura imaginária do mito ingênuo e no contexto artificial de citações
literárias. Corre paralelo, um espetáculo de music-hall à americana com trilha,
em sua maioria composta em processo colaborativo pelo elenco, o sexteto musical
e o autor Darryl Pinckney. A presença de araras comentaristas, que gralham a
sequência das cenas, carnavalizam, ao lado de um intruso Groucho Marx, o esfumaçado
arranjo dramático. Entre as cenas, diante da cortina, os atores fazem
pantomimas simplórias e emitem sons repetidos, no embalo de onipresente
chorinho. Até mesmo a administração do tempo, tão preciso nas encenações de Bob
Wilson, sofre com momentos mortos, ao que parece, necessários para a troca de
cenário. E como é previsível, o visual se impõe com a explosão de neons e a grandiosidade
árida dos elementos, um tanto deslocados pelo folclórico brilho dos figurinos. Do
elenco, asfixiados na estrutura interpretativa rígida e imutável do diretor,
Jlhe Oliveira é um Garrincha coadjuvante. Naruna Costa vive uma Elsa Soares,
misto de cantora de soul e tiques de atriz de Hollywood. Lígia Cortez e, em
especial Bete Coelho, compõem com movimentos exatos e vozes irônicas, as araras
narradoras. Luiz Damasceno é um bufão solitário. Os demais atores cumprem com a funcionalidade
exigida, os papéis performáticos de figuras cantantes. A máquina teatral de Bob
Wilson continua na produção em série de artigos, luxuosamente empacotados e
tecnicamente bem acabados, vendáveis pelo rótulo. Ao desaparecer nesta linha de
montagem, Garrincha pode ser lembrado como um mito sobrevivente, como na sua
vida, que, antropofagicamente, devora uma estética, como seus revezes, que lhe
seria indiferente.