Questões de
Autoria
Crítica/ Maravilhoso
A cidade e o carnaval para reacender indignações |
Diogo Liberano, autor desse texto em cartaz no
Teatro Glaucio Gill, escreveu Sinfonia
Sonho, sua peça anterior, baseada nas mesmas premissas de Maravilhoso. Em Sinfonia, um fato real (invasão e morte em escola no subúrbio do
Rio) estabelecia interligação do individual ao coletivo com uma poética
dramática que criava verdadeira dramaturgia. Em Maravilhoso, o mecanismo já
não funciona com tanta veracidade. O personagem é a cidade e suas fraturas
sociais, representadas por bicheiro, desempregado, jornalista de caráter
duvidoso, patricinha e evangélica, que circulam em torno de desfile das escolas
de samba. Os subterrâneos e mazelas nada maravilhosos de uma cidade dita
maravilhosa contrastam apenas pela ironia na exploração dúbia do adjetivo. Liberano,
mesmo sustentado diálogo ágil e intentando referência, ainda que imperceptível
de clássico, constrói dicotomias e maniqueísmos de quadro sócio-político, deixando
em plano secundário a possibilidade de fugir ao esquematismo que move a ação
individual dos personagens. Sem atingir cada um deles como seres sociais e sem caracterizá-los
como alguma autonomia individual, tornam-se figuras que representam mais categorias
do que pessoalidades. A diretora Inez Viana até individualiza os personagens,
mas pelo viés da caricatura. Seja por composição corporal acentuada (os
movimentos sincopados no andar de Debora Lamm), pela expansão gestual e maneirismos
(no bicheiro descontrolado de Marcio Machado), pela dificuldade de caracterizar
personagens (a religiosidade de Carolina Pismel e a contradição do jornalista
de Felipe Abib) e pela cena do filho no enterro da mãe (Paulo Verlings não consegue
amenizar a pieguice), a diretora acaba reiterando o que já se revela nas
imprecisões da escrita. A impressão é a de que Liberano reescreveu, inspirado
por algumas das peças da década de 70 que procuravam acender indignações,
requentando manifestações da cultura popular.
Crítica/ O
Controlador de Tráfego Aéreo
Biografia com muitas vozes |
O título informa na sua simplicidade o essencial
do que se assiste no Teatro Serrador. Não há necessidade de se conhecer,
previamente, a história de Silvano Monteiro, que divide a cena com outros sete
atores e 30 espectadores, sentados em círculo no palco à volta de uma mesa. A
profissão de Monteiro, fica-se a saber pelo título e pelos desdobramentos da
sua vida, que surgem, redimensionados por empréstimos de fragmentos de textos,
cuidadosamente, selecionados. O que se propõe e que se transforma em vitalizada
experiência de dramaturgia cênica é a criação de espaço expressivo no qual se
estabelecem vozes múltiplas que ampliam a biografia deflagradora. Na trilha em
que o diretor Moacir Chaves desenvolve suas montagens, O Controlador de Tráfego Aéreo se modela sobre iguais premissas,
como a leitura de documentos que dramatizam
a cena, sendo ela mesma construída sobre o desvendamento que a realidade administrativa do papel pode
provocar com sua frigidez burocrática. Neste caso, pareceres médicos e
jurídicos são apresentados na sua própria linguagem, e como tal interpretados,
contrastando com as realidades da existência. É neste espaço, no interregno
entre o documento e o ato, que a cena de Chaves se integra. O diretor-autor
recorre a trechos de outras peças, dramáticas, trágicas, ficcionais,
filosóficas, para compor a circularidade das palavras que acompanha a formação
física da plateia. Nos fragmentos irônicos de utopias e crônicas sociais, da
crueza de males variados e do niilismo machadiano, emerge o fio que tece a
envolvência e estende a narração para além da história
individual. A excelente iluminação de Aurélio de Simone, o sintonizado elenco
(Silvano Monteiro, Danielle Martins de Farias, Fernando Lopes Lima, Kassandra Speltri,
Leonardo Hinckel, Luisa Pitta e Rafael Mannheimer), a segura dramaturgia e
encenação de Moacir Chaves confirmam as bases sobre os quais o diretor fixa,
com crescente autoridade autoral, sua marca como encenador.
Crítica/ Cucaracha
Jô Bilac, que assina este texto em cartaz no
Teatro Glaucio Gill, é um dos mais prolíficos autores da nova dramaturgia
carioca, produzindo peças em série, abordando universos tão diversos quanto
obsessões rodriguianas, filmes noir e
derivativos da cultura pop. Nem sempre a dispersão temática se traduz em peças
que revelem idéias, reduzidas e esvaziadas na superficialidade pelo que não se
tem a dizer e na precariedade técnica de como fazê-lo. Cucaracha permite desvendar rumo mais consistente na trajetória dramatúrgica
de Bilac, em especial por conduzir a narrativa, despregando-se do uso de algum
gênero em favor de original jogo dramático. Paciente em coma e enfermeira
dialogam ou monologam - a percepção de uma e outra forma é a razão do entrecho
- num plano entre realidade e inconsciência, em que se projetam possibilidades
de liberdade. A relação entre elas se nutre da subjetividade de cada uma, rebatida
pela concretude do que surge da angústia de ambas e que se expressa num espaço
onírico e escapista. O diretor Vinicius Arneiro compõe imaginário cênico para o
percurso das personagens que as conduzem à inevitabilidade do destino do qual
nem mesmo as baratas podem escapar. Arneiro desenha esse arco de sentimentos numa
montagem que, de início, parece asséptica, mas que em movimentos sutis e
ambiente de estranhamento se adensa, convergindo para exposição delicada da
misteriosa consciência de existir. Carolina Pismel e Júlia Marini têm
interpretações de alta voltagem, capazes de transmitir de maneira poética as
imponderáveis engrenagens do sonho ou pesadelo. O cenário de Aurora dos Campos
na quebra do branco hospitalar se integra à cor em degradé do figurino de
Thanara Schonardie, aliados à iluminação de Paulo César Medeiros e à música de
Daniel Belquer valorizando montagem competente e o melhor texto do autor.
Crítica/ Nem
Mesmo Todo o Oceano
Ao
entrar no Espaço Sesc, o publico já encontra os atores na arena, jogando bola
num esquentamento que sugere um qualquer esporte sem disputa. A movimentação dos
atores se prolonga como prólogo à adaptação de Inez Viana para o romance de
Alcione Araújo, preestabecendo as características de coringa-jogral para o
estilo da encenação. Os seis atores – Leonardo Brício, Iano Salomão, Jefferson
Schroeder, Junior Dantas, Luis Antonio Fortes e Zé Wendell – se revezam na
dezena de papéis, formando coletivo interpretativo que transfere, de um a
outro, a bola da atuação. O tom se distende num coral de vozes e coreografia de
ações, rebatendo a narrativa sobre a ditadura militar em maratona de quadros
rápidos e corrida por desenho grupal. A opção da diretora, ao mesmo tempo em
que dá agilidade à encenação, por outro lado retira-lhe o enfrentamento mais
vertical do que está proposto no romance. O rapaz do interior que vem para o
Rio cursar medicina e se enreda em contradições diante daquilo que a situação
repressora e violenta o sujeita, se perde numa tradução física. A adaptação também não evita o excesso de informação sobre
o periodo que o romance caudaloso derrama em quase 800 páginas. A historicidade asfixia a concentração na
figura central, que é afogada pelo quadro dos acontecimentos e tendo
comportamento algo mecaniscista frente à sua ausência de ideologia. E há ainda
a previsibildade da trama, em que encontros são antevistos e o desfecho facilmente
antecipável. A cenografia despida de Flávio Souza cria projeções circulares na
arena com bom efeito visual.
macksenr@gmail.com