Crítica/ Emily
Perfume e sabor do jardim poético de uma escritora em êxtase |
Na pequena Amherst, Massachussets, em meados do século 19, Emily Dickinson,
uma mulher de vida absolutamente comum, transpõe os limites da rotina de sua casa
através da fantasia e de produção poética de alto nível. Assim, o americano
William Luce capta, como se estivesse traçando um rendilhado, a vida e as
circunstâncias que levaram a frágil Emily a se transformar num poeta de
sensibilidade irretocável. Reclusa, delicada, lúcida, fantasiosa, assistiu a
perda de parentes e amigos, enfrentou desilusões amorosas, foi rejeitada por
editores. Seu mundo foi apreendido e recriado
nos limites da propriedade da família, vizinha ao cemitério da cidade. Emily
confessa que “viver me deixa em êxtase”, sentimento que traduz na escrita poética,
seu verdadeiro universo, já que o mundo físico alcançava tão somente o que era
atingido pelos seus olhos. Luce se baseou nas cartas e nos poemas de Dickinson
em monólogo que desenha as mais fundas motivações de Emily para escrever, avizinhando-se
daquele ponto indefinível a partir do qual se confundem viver e criar. O texto
de Luce caminha no ritmo das pequenas tarefas a que Emily se circunscreveu. Ela
se apresenta à platéia oferecendo receita de bolo ou lembrando que prometeu
descacar maçãs para a irmã Vinnie. Em contraponto aos domésticos afazeres que
rondam sua alma, descreve o impalpável: “não sou capaz de descrever a
eternidade. Ela desliza ao redor, como um oceano. E este mundo é tão pequeno,
apenas um rubor no céu, antes da aurora. Por isso, é preciso que a gente se dê
as mãos com força, que não falte ninguém, quando os pássaros chegarem.” O diretor
Eduardo Wotzik adaptou o texto sem desfazer a sua tessitura, a mesma que Analu
Prestes teceu na ambientação do jardim repleto de perfumes (de bolo, folhas e
sementes) e de borboletas, que ensaiam vôos no hall do Poeirinha. O cenário de
formas, odores e sentidos, que tão bem envolve a interpretação de Analu, captura
atmosfera poética da natureza, deixando visível a identidade da atriz com o universo
de Emily Dickinson. (Vale a pena explorar
belas fotos de momentos de explosão ou quietude da natureza publicada por Analu
nas redes sociais). A atuação de Analu Prestes está referendada por esta
platitude misteriosa de flores, frutos, folhas e de alimentos, que nos nutre de
pura ou dolorida beleza, e pela plasticidade das imagens que a poeta, de modo
delicado e melancólico, traduziu, e que a intéprete transcreveu em afetuosa
minúcia no palco.
Crítica/ À Beira do Abismo me Nasceram Asas
Palavras emocionais para conviver com a passagem do tempo |
Esse texto, em cartaz no Teatro do Leblon, é
assinado por Maitê Proença e baseado em original de Fernando Duarte. E a
autora, que divide o palco com Clarice Derzie Luz, também compartilha a direção
com Clarice Niskier, função que tem ainda a supervisão de Amir Haddad. A
concentração em muitas mãos de cada uma dessas atividades, talvez tenha
contribuído para as dispersas características que tornam soltos os fios
condutores da narrativa. As duas velhinhas, abrigadas num asilo, compartilhando
a solidão e o abandono, estabelecem, entre resmungos da idade e lembranças dos
velhos tempos, os seus caminhos finais. Os desabafos contêm os inevitáveis queixumes
relacionados aos acréscimos de peso aos muitos anos de vida. A estrutura dramática
compõe-se de cenas mais sequenciadas do que integradas a um desenvolvimento orgânico.
Soltas, buscando a palavra emocional e sem encontrar a interioridade, as cenas se
apoiam em paralelos superficialmente contrastados: uma das personagens é um
tanto depressiva, a outra, expansiva. A direção tripla acentua a dificuldade de
encontrar a unidade textual. Ao evitar o melodramático, o que é um mérito, o
trio procura enquadramento algo evocativo e poético, tentando atribuir à volatilidade
dos diálogos, significados mais abrangentes. As palavras, no entanto, não têm
força e densidade para alcançar tais pretensões. Nos figurinos de Beth
Filipecki e no cenário de Cristina Novais se confirmam as intenções de poetizar,
como também na impostação corporal, mas
o resultado é limitado. A cena em que a bailarina
celebra a aniversariante e que papéis laminados caem sobre as
atrizes, adquire ar involuntariamente patético. Clarice Derzie Luz modula pouco
a evolução da personagem, fixando-se na sua característica de humor. Maitê
Proença intenta emprestar carga dramática mais dosada, sustentando com alguma
vivacidade a apagada velhinha.
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