Duas Vezes
Beckett
Crítica/ Primeiro
Amor
Refugos da existência à luz de significados impalpáveis |
A origem de Primeiro Amor, em cartaz no Teatro
Poeirinha, às terças e quartas, que ao lado de Moi Lui (de quinta a domingo) compõe o Projeto Beckett da atriz Ana Kfouri, é uma narrativa curta,
literária, mas que traz as mesmas obsessões
da dramaturgia do autor irlandês. Homem, diante da morte do pai e da desolação
dos sentimentos, vive solitário o encontro com uma mulher e o nascimento de um
filho, descrevendo-se ao longo desse
percurso vital. As palavras de sonoridades interiores e silenciosas
repercussões emocionais desdobram-se em significados impalpáveis, refugos de
existência, incapazes de capturar a consciência de si mesmo. A palavra é o
veículo através do qual esse homem procura narrar-se,
a voz que tenta dizer o que só se explica pelo silêncio. Esse mergulho em
sombrios e misteriosos meandros intenta compreender-se pela palavra, aquela que
na montagem de Antônio Guedes é multiplicada
no conjunto de letras em movimento projetado em video de Helena Trindade. O
visual é um dos pontos de destaque, tanto na cenografia do espaço terroso e
árido, quanto na luz difusa. Nessa ambientação de deserto e desamparo
avassaladores, o diretor ressalta a voz que emerge do ermo, centrando em leve
composição masculina a atuação de Ana
Kfouri. Rígida, com gestos contidos e ação
oral, Ana mecaniza o que diz para
retirar-lhe qualquer resquício dramático. A narração becktiana é contínua, linear, sem querer projetar emoções,
senão as ocultas. É, exatamente este o percurso, através do qual, a atriz
conduz sua interpretação.
Crítica/ Moi Lui
O imponderável espaço interior que não se vê |
Moi Lui,
baseado no romance Molly, de Beckett, é um desafio na
transposição para o palco. A complexidade está na sua própria construção, já
que dois monólogos interiores dialogam no livro, apontando caminhadas em
direção a dúvidas de quem se é, e naquilo que se envolve. Voltar ao princípio
para constatar a decrepitude e a morte do fim, pedalar por rotas vagabundas em
que os gestos reproduzem atitudes desprovidas de sentido, são condenações de personagens que não sabem
bem quem são, o que fazem e porque o fazem. O que contam se nega pela dúvida. O
que falam não alcança a verdade ou inventa a mentira. Fala-se de um
imponderável viver, de alcançar um vago “espaço interior, que não se vê nunca”,
uma área cavernosa, a mesma do cérebro e do coração onde sentimento e
pensamento se escondem. “Gostaria de falar das coisas que me restam, me
despedir, terminar de morrer.” É
essa pulsão que a adaptadora e diretora Isabel Cavalcanti reproduz com força
dramatúrgica capaz de tornar secundária a
origem literária. A contundência poética e o estilo do “narrador-narrado”
traduz-se com a mesma economia expressiva que o material literário propõe. A
direção de arte de Rui Cortez com os elementos que apontam, sem sublinhar, tem
impacto, como na escada que “leva a lugar nenhum” e nos sutis pontos de luz. A
iluminação, assinada por Tomás Ribas, é um ponto referencial da encenação. O
sombrio que aclimata contrasta com luminosidade que explode em momento especialmente
denso. Uma brilhante concepção de luz. A diretora imprimiu à atriz trilha que
desmonta o dramático, desprovida de intensidades e que confere autoridade à
palavra. Desenho perfeito para apropriação da interioridade da voz do autor,
que Ana Kfouri segue com a justeza automatizada das significações recônditas.
macksenr@gmail.com