quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

6ª Semana da Temporada 2013


Duas Vezes Beckett

Crítica/ Primeiro Amor
Refugos da existência à luz de significados impalpáveis
A origem de Primeiro Amor, em cartaz no Teatro Poeirinha, às terças e quartas, que ao lado de Moi Lui  (de quinta a domingo) compõe o Projeto Beckett da atriz Ana Kfouri, é uma narrativa curta, literária, mas que traz as mesmas obsessões da dramaturgia do autor irlandês. Homem, diante da morte do pai e da desolação dos sentimentos, vive solitário o encontro com uma mulher e o nascimento de um filho, descrevendo-se ao longo desse percurso vital. As palavras de sonoridades interiores e silenciosas repercussões emocionais desdobram-se em significados impalpáveis, refugos de existência, incapazes de capturar a consciência de si mesmo. A palavra é o veículo através do qual esse homem procura narrar-se, a voz que tenta dizer o que só se explica pelo silêncio. Esse mergulho em sombrios e misteriosos meandros intenta compreender-se pela palavra, aquela que na montagem de Antônio Guedes é  multiplicada no conjunto de letras em movimento projetado em video de Helena Trindade. O visual é um dos pontos de destaque, tanto na cenografia do espaço terroso e árido, quanto na luz difusa. Nessa ambientação de deserto e desamparo avassaladores, o diretor ressalta a voz que emerge do ermo, centrando em leve composição masculina a atuação de Ana Kfouri. Rígida, com gestos contidos e ação oral, Ana mecaniza o que diz para retirar-lhe qualquer resquício dramático. A narração becktiana é contínua, linear, sem querer projetar emoções, senão as ocultas. É, exatamente este o percurso, através do qual, a atriz conduz sua interpretação.               
  
Crítica/ Moi Lui
O imponderável espaço interior que não se vê
Moi Lui, baseado no romance Molly, de Beckett, é um desafio na transposição para o palco. A complexidade está na sua própria construção, já que dois monólogos interiores dialogam no livro, apontando caminhadas em direção a dúvidas de quem se é, e naquilo que se envolve. Voltar ao princípio para constatar a decrepitude e a morte do fim, pedalar por rotas vagabundas em que os gestos reproduzem atitudes desprovidas de sentido, são condenações de personagens que não sabem bem quem são, o que fazem e porque o fazem. O que contam se nega pela dúvida. O que falam não alcança a verdade ou inventa a mentira. Fala-se de um imponderável viver, de alcançar um vago “espaço interior, que não se vê nunca”, uma área cavernosa, a mesma do cérebro e do coração onde sentimento e pensamento se escondem. Gostaria de falar das coisas que me restam, me despedir, terminar de morrer.É essa pulsão que a adaptadora e diretora Isabel Cavalcanti reproduz com força dramatúrgica capaz de tornar secundária a origem literária. A contundência poética e o estilo do “narrador-narrado” traduz-se com a mesma economia expressiva que o material literário propõe. A direção de arte de Rui Cortez com os elementos que apontam, sem sublinhar, tem impacto, como na escada que “leva a lugar nenhum” e nos sutis pontos de luz. A iluminação, assinada por Tomás Ribas, é um ponto referencial da encenação. O sombrio que aclimata contrasta com luminosidade que explode em momento especialmente denso. Uma brilhante concepção de luz. A diretora imprimiu à atriz trilha que desmonta o dramático, desprovida de intensidades e que confere autoridade à palavra. Desenho perfeito para apropriação da interioridade da voz do autor, que Ana Kfouri segue com a justeza automatizada das significações recônditas.

                                                          macksenr@gmail.com