Dramaturgia Internacional em Perspectiva
Crítica/ A Volta
ao Lar
Desconstruindo a lógica psicológica de uma família |
O
que é realidade? O que é aparência? A dúvida se incorpora à dramaturgia de
Harold Pinter como se a ambivalência fosse a sustentação do seu jogo dramático.
A ação não está na trama, mas na forma como Pinter constrói narrativa interna. A volta ao Lar estabelece
nesses dois planos expressivos (do enredo em si e do que acontece para além
dele) a retomada de uma certa convenção teatral. Aparentemente, se
identificando com o realismo-psicológico, mas apenas como máscara, disfarce
para mergulhar em camadas mais densas a partir de situações que bóiam na
superfície. No cenário único da sala da
família do velho Max, açougueiro aposentado, viúvo de uma prostituta, os dois filhos
— Joey, boxeur e Lenny, gigolô — e seu irmão Sam recebem a inesperada visita do filho
pródigo, Teddy, que chega de madrugada com sua mulher Ruth. A vinda de Teddy,
professor de Filosofia que vive há anos nos Estados Unidos, desencadeia
processo de reorganização familiar. As tensões em que vivem se harmonizam quando esta volta traz a identificação de Ruth com Jessie, a esposa/mãe morta.
Os
diálogos alternam sentimentos contrastados. O comentário sobre um objeto, como
um sanduíche que foi comido ou a colocação de um copo na mesa, desencadeia
conflitos latentes que explodem em rastilho. A ação interna acompanha essas
alternâncias de comportamentos, desconstruindo a lógica psicológica. A
dramática de Pinter se apóia, essencialmente, na linguagem, e é através dela
que se cria o substrato do conflito, dentro do qual o silêncio e as pausas
marcam o sentido das falas. Harold
Pinter não pretende explicar as motivações. Cada um age sob algum
tensionamento, reagindo de maneira desconcertante a um perfil que não encontra
explicações ou justificativas. Escrita há quase 50 anos, A volta ao lar provocou
na época reações à sua linguagem vulgar e ao desfecho amoral, e ainda hoje a
peça suscita alguma perplexidade com a seu perturbador movimento de verso e
reverso.
A
encenação de Bruce Gomlevsky, em cartaz no Centro Cultural dos Correios, na
excelente tradução de Millôr Fernandes, se desvia da interioridade do texto,
caminha em paralelo às entrelinhas, mantendo-se linear frente a progressão
dramática. É uma linha para se debruçar sobre trama tão volátil. Há mistérios
em cada um dos personagens, já que o autor não fornece as razões para suas
atitudes, que Gomlevsky trata de modo discreto. O elenco segue a linha da
direção, com Tonico Pereira modulando grossura e vulgaridade nas recônditas
motivações para os atos do velho pai. Bruce Gomlevsky também empresta variação
entre cinismo e ressentimento do
gigolô. Arieta Corrêa é quem com interpretação que projeta dubiedade e vacuidade que impelem Ruth a agir com
tanta falta de motivos, aproximando-se, a considerar a existência de tal
conceito, de um estilo Pinter de atuação. Jaime Leibovitch se investe
fisicamente da figura do motorista. Gustavo Damasceno está apagado e pouco
integrado ao personagem. Sergio Guizé é o boxeur.
Crítica/ Arte
Invólucro chique para conversa jogada fora |
A peça de Yasmina Reza é uma grife, um daqueles
berloques da cultura chique aos quais se acrescentam temática com toques
contemporâneos e observações espirituosas sobre comportamentos socialmente
identificáveis. Como comédia que pretende dar, ao mesmo tempo, piscadela para a
recepção estética da obra de arte e afago nos valores da amizade, o texto em
cartaz no Teatro Leblon, passeia com descompromisso de uma conversa jogada fora
sobre esses temas, sem se deter em qualquer um deles, apenas para os fazer
parecer inteligentes e profundos.
A compra por quantia vultosa de um quadro
monocromático provoca em três amigos reações desmedidas. Um deles, explode pelo
que considera o absurdo da compra tão desimportante e por valor exorbitante,
enquanto o comprador sente-se agredido e magoado. O terceiro, menos dotado,
tanto na vida profissional quanto
em brilho intelectual, serve de contraponto à desavença. Esses
companheiros de anos de convivência, aparentemente sem relação muito estreita
entre eles, enfrentam a crise plantada pela compra do quadro para repensar a amizade. A autora, de origem
iraniana, mas de expressão francesa, segue em parte a tradição racionalista da
cultura de adoção, e impõe aos personagens capacidade de argumentação
desproporcional ao alcance dos problemas ventilados pelo trio masculino. A
forma como o quadro é recebido traz, secundariamente, a questão do modo como é
absorvida a arte na atualidade. Será que a estranheza provocada por obra de
cores e traços tão econômicos é a medida da compreensão
nestes tempos da cultura do evento? Ou será que a reação dos personagens à
obra não é ressonância de prováveis reações da plateia diante das proposições atribuídas ao quadro? Não se
trata de problema de avaliação artística, sequer de medida da sensibilidade
contemporânea para a criação, mas de extrair do senso comum a chave dramática.
Neste sentido, Yasmina Reza é esperta na escolha do quadro polêmico. A sustentação
narrativa é que é menos vivaz. O mundo afetivo e as contradições emocionais da
trinca parecem exageradas frente às suas atitudes aligeiradas, que reduzem tudo
a tempestade em copo d’água. O compromisso com a facilidade atinge qualquer
possibilidade de que tudo se
resolve mais inteligentemente do que riscar uma tela branca de R$ 200 mil com
caneta de tinta lavável.
A boa tradução, tanto verbal quanto na encenação
do diretor Emilio de Mello, insufla modernidade
ao texto, com os atores manipulando a mesa de som, entrando e saindo do
foco da cena sem maiores cerimônias, resolvendo deste modo os quase monólogos
que a autora propõe. O cenário de Aurora dos Campos explora o branco como um
fundo infinito de estúdio fotográfico, com elementos decorativos de bom design. A luz de Tomás Ribas é precisa, complementando a embalagem
deste embrulho bem acondicionado. Como o texto parece esvaziar o confronto, que
tem tão pouco a dizer, quando ocorre deixa a impressão de que cada um dos
personagens está falando para si mesmo. Marcelo Flores busca o personagem pelo
escape do humor. Claudio Gabriel transmite a ansiedade da figura que interpreta
e Vladimir Brichta adota tom de comediante.
Crítica/ Sem
Pensar
Retrato juvenil da convivência doméstica |
Texto de juventude, escrito pela autora inglesa
Anya Reiss ainda na adolescência – tinha 17 anos quando lançou a peça, em
cartaz no Teatro Ginástico -, tem a dimensão que a sua faixa etária alcança.
Diálogos que repetem linguagem dos jovens e pendengas adultas ficam no limite
que a pouca idade e a inexperiência permitem. O universo de que trata é aquele que
Reiss conhece, o que viveu em tão curto espaço de convivência com o mundo
familiar. Garota de 13 anos convive com mãe e pai que discutem todo o tempo,
integrando quadrilátero que se completa com rapaz de 21 anos que aluga um quarto na casa da família. O envolvimento
com o rapaz se arma em contraponto aos conflitos parentais e ao barulhento
grasnar das amiguinhas, excitadas com o despertar da sexualidade. Se a trama é
pouco imaginativa e nem sempre bem urdida – as soluções são quase mágicas e o
desfecho de inesperada superficialidade – tanta fragilidade deve ser atribuída
à autora a quem faltou maturidade para dramaturgia mais sólida. A hesitação
quanto ao gênero (tragicomédia ou drama familiar) é mais um dos elementos que
fragiliza ainda mais o texto juvenil que, pode ser visto somente como promissor
primeiro trabalho e de escrita em processo de formação.
O diretor Luiz Villaça, vindo do cinema e da
televisão, empresta dinâmica visual à cena, preenchendo os cortes entre elas com ritmo acelerado e em alguns casos com
simultaneidade vibrante. Mesmo com as quebras do texto (cenas alongadas e
discussões repetitivas), a direção tenta evitá-las ao não permitir que se
perceba descontinuidades. O cenário de Valdy Lopes contribui para o ordenamento
seriado da montagem, com seus dois planos e quatro ambientes bem distribuídos
no espaço. Villaça aproveita-se da indefinição de gênero para puxar a encenação
para o humor, o que faz sem restrições, não só por utilizar o temperamento da
atriz Denise Fraga, como também por deixar que a comicidade permita comunicação
direta com a plateia. A cena da reunião familiar em torno da televisão é
evidência do apelo ao riso franco. A tradução de Rodrigo Haddad é fluente e
exata na correspondência do linguajar das adolescentes. O casal Denise Fraga e
Kiko Marques se entende com facilidade na chave do humor com que envolve a
interminável escaramuça doméstica, que, afinal é resolvida de maneira rápida e falsa.
O outro casal, a menina Júlia Novaes e o inquilino Kauê Telloli, se desentende
de outro modo (esse é o real plot da
trama, que acaba por ficar a meio, e tem final inconcluso por deficiência da
dramaturgia), mas com a mesma eficiência do par adulto. O restante do elenco –
Virgínia Buckowski, Isabel Wolfenson, Verônica Sarno e Paula Ravache – mantém a
vivacidade que marca a direção.
Crítica/ Querida
Helena Serguêuievna
À mestra, sem nenhum carinho |
Quando esse texto de Ludimila Razumovskaia foi
censurado na década de 80, a Rússia ainda fazia parte da União Soviética e o
comunismo estava vivo, apesar de ter dificuldade de camuflar as suas fraturas.
A peça de Razumovskaia, em cartaz no Teatro Poeirinha, captura, exatamente,
esse momento de transição, a passagem de um regime em ocaso com suas contradições
sociais e a ausência de futuro, minimamente, vislumbrado para seus cidadãos. A
professora solitária que recebe a visita inesperada, no dia de seu aniversário,
de grupo de alunos que, aparentemente, chegam à sua casa para comemorar a data,
mas que, no entanto, tem outra intenção. Procuram coagir a professora a
adulterar as notas de prova, já que ela tem as chaves do armário onde estão
guardados os resultados. Aos poucos e através de insidiosos aliciamentos e
depois de explícita violência, os quatro alunos se desmascaram, acentuando o
confronto com a detentora da chave que constata, através de cada um deles,
manifestações da falência do sistema educacional e dos princípios alardeados
pelo regime. Desajustados, com objetivos de vida mesquinhos, os jovens estão
diante de uma mulher que, seguindo os padrões que lhe foram impostos, defende
princípios desprezados pelos estudantes. Painel de uma Rússia em crise política
e social está por trás desse drama que reforça o conflito como arma para
debater os receios de presente esfacelado que prenuncia futuro incerto. A
direção de Isaac Bernat se apropria da dramaticidade
e da ação progressiva que move os garotos invasores para intensificar a
movimentação e acelerar o ritmo narrativo. Não é muito fácil conduzir elenco, obrigatoriamente
muito jovem e, portanto, justificadamente inexperiente, em sintonia com
aceleração pretendida pelo diretor, sem que se perca a força do embate. Bernat
até consegue, ainda que só parcialmente.
A cenografia de Dóris Rollemberg dispõe com funcionalidade do espaço do teatro.
O cuidado e o empenho desta produção se expande para os figurinos da equipe Espetacular!, para a
direção musical de Tato Taborda, direção de movimento de Maria Alice Poppe e
iluminação de Aurélio de Simoni. O elenco dos garotos – Fábio Enriquez, Gabriel
Vaz, João Pedro Zappa e Marina Provenzano – demonstra percepção cênica, postura
de palco e disciplina interpretativa, mas ainda está um tanto imaturo. Helena
Varvaki se entrega à professora numa atuação íntegra, revelando o quanto
acredita na possibilidade de traduzi-la em sua alargada humanidade. A atriz,
que nas primeiras cenas interioriza a timidez e a solidão da professora, mostrando-se
menos à vontade na maneira como reage às agressões dos alunos. Helena atriz
mantém o tom algo velado da voz e a contração corporal que tão bem serviu à
Helena personagem no início, mas que a empobrece na quadra final. Não
impulsiona a personagem com a mesma fragilidade e força provocada pelo estrupo da intimidade.
Crítica/ Não
Sobre Rouxinóis
Reportagem fotográfica para um drama-denúncia |
Tennessee Williams, autor de Não Sobre Rouxinóis, que inaugura a simpática Sala Paulo Pontes do
Teatro Net, é, indiscutivelmente um dos representantes mais expressivos do
realismo psicológico da dramaturgia do século passado. O núcleo duro da sua
obra – Um Bonde Chamado Desejo e A Margem da Vida – é demonstrativo das suas melhores qualidades como dramaturgo. Mas
seus primeiros e últimos textos se distanciam desse ponto de convergência
qualitativa, como é o caso desta trama baseada em fato real que Williams
escreveu em 1930, quando tinha 27 anos. Pode-se verificar que estão em processo
de gestação, menos o universo dos sentimentos desgarrados e das ilusões perdidas,
do que reportagem dramática sobre conflitos provocados pelo exercício despótico
de poder em presídio em plena Depressão americana. As condições em que vivem os
presos, as atitudes arbitrárias do diretor e a greve de fome que desencadeia o
desfecho trágico, são mediadas pela presença de jovem datilógrafa, que se
apaixona por um dos detentos. A arquitetura dramática é bem armada e os diálogos
reproduzem linguajar e tensão carcerários.
Qualidades nada desprezíveis, mas que não alcançam maiores vôos, senão os da
correção do playwriting e artesania, melhor exercida em
investidas futuras do autor.
Com direção de João Fonseca e Vinícius Arneiro –
é sempre difícil perceber o quanto
essa divisão de tarefas se unifica na linguagem de um espetáculo – Não Sobre Rouxinóis tem abordagem jornalística, de exposição factual de
caso verídico. O realismo fotográfico que a dupla confere à encenação traça com
tintas carregadas imagens reproduzidas como registro de fatos. E numa montagem
com mais de uma dezena de personagens, alguns circunstanciais, outros
definidos, mas praticamente todos de contornos realistas, há que torná-los
críveis, capazes de se fazerem verdadeiros,
e não poses vivas. Há um enorme desequilíbrio
no elenco, em que atores que têm que exteriorizar atitudes, enveredam pela
composição exacerbada. Outros, que têm a responsabilidade de encontrar desenho
mais psicológico, ficam bem aquém dessa linha. Os diretores se alinharam com o
material pelo arcabouço genérico do drama-denúncia, e mesmo neste caminho, não
dispuseram de elenco capaz de o levar muito adiante. A cena inicial, irônica e de
certo modo evocativa, é mal construída e passa meio despercebida, ao que se
junta a atuação insatisfatória de Nilvan Santos. Thelmo Fernandes transmite a
impressão de que aciona uma chave de seu registro interpretativo, e segue sem
maiores percalços. Eduardo Rieche está um tanto rígido e mecanizado, sem aproveitar-se
das poucas alternativas que lhe oferece o Canário. Júlia Marini como a
secretária está pouco à vontade, projetando gesticulação e voz como se
estivesse ensaiado detalhadamente cada movimento, sem harmonizá-los. Os demais,
se distribuem entre maneirismos físicos e atuações simplórias. O cenário de
Nello Marrese e Natália Lana é sugestivo com seus tubos que lembram grades, e o
figurino de Mauro Leite e o visagismo de Uirandê Holanda confirmam bem aquilo
que se quer retratar.
macksenr@gmail.com