Ecos do Festival de Curitiba
Três montagens que estrearam na mostra paranaense
chegam ao Rio
Crítica/ A
Peça do Casamento
Arena, sem entrelinhas, dos escombros de uma relação |
A dramaturgia realista de Edward Albee estabelece
através de diálogos ferinos, perscrutadoramente irônicos e sutilmente cruéis,
os descaminhos da convivência. Sentimentos são expostos como consequência de
relações em declínio, mas que se mantêm apoiadas no histórico da vida em comum e sem qualquer perspectiva de
revigorar-se como futuro. Neste texto escrito na década de 80 e em cartaz no
Teatro Laura Alvim, Albee conserva essas características autorais com
indisfarçável desdobramento de sua mais destacada peça, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, escrita há duas dezenas de anos
antes. Como em Virginia Woolf, o
casal já esgotou suas possibilidades de se ouvir mutuamente, ainda que tenha
criado fantasias de permanência. Não há para onde fugir, e quem dá a partida
para que, pelo menos aparentemente, se chegue a uma solução é o marido. Vindo do trabalho, como em qualquer outro dia,
anuncia que está abandonando a mulher. Esse golpe de teatro, deflagra a
discussão sobre o casamento, seus escombros e o que, possivelmente, resta de
afeição. Nesta arena, que se instala, ora com um atacando e o outro se
defendendo, sobram despojos para ambos, como se quisessem demonstrar que, mais
do que a provável ruptura depois de anos, as fraturas foram sendo expostas e
construídas ao longo de todo esse tempo. Esta versão, traduzida por Marcos
Ribas de Faria e dirigida por Pedro Brício, caminha, de certo modo, num desvio
do texto. Há nos diálogos de Albee, mais do que na ação, contundência que se verbaliza em entrelinhas, por entre
aquilo que, explícita e naturalisticamente, está sendo dito. O drama se localiza neste espaço
subjetivo, no subterrâneo dos sentimentos revelados e nos desvãos das emoções exibidas.
Brício explorou essa subjetividade como uma fotografia hiper-realista, em que o
substrato se transforma em comentário (critica?) e linearidade (humor?). Não
deixa de ser uma aproximação possível, mas sem dúvida um tanto redutora e
dispersiva da atmosfera de virulência. O cenário de Aurora dos Campos sugere
mais do que reproduz e a iluminação de Tomás Ribas se impõe pelas intervenções
discretas, assim como os adequados figurinos de
Rita Murtinho. O casal de atores – Dudu Sandroni e Guida Vianna – se ressente
da linha da direção. Em muitos momentos parece se estar diante de uma comédia,
alta comédia, poderia até se considerar, mas que joga as interpretações para a
zona perigosa de um humor deslocado. Guida, mais do que Dudu, sobrecarrega a
interpretação de piscadelas para a
platéia, como se buscasse criar conivência para que o público percebesse o
quanto aquela mulher é identificável. Dudu se mostra mais interiorizado, ainda que não descure do aspecto naturalista que
empresta ao papel.
Crítica/ De
Verdade - A Mulher Certa
À procura de fazer teatro, esquecendo o livro |
A primeira fala desta adaptação do romance De Verdade – A Mulher Certa, do húngaro
Sándor Márai, que pode ser vista no Espaço Sesc, menciona como é difícil contar,
em especial quando se fala do nada. Esse desabafo inicial, mesmo que diga muito
em sua crueza, parece ser o parâmetro a partir do qual o casal se debate em hesitações
emocionais. Os desejos não se expressam como possibilidades de se realizarem,
mas como formas de dizer algo sobre si, mirando o outro. É desta
interpenetração de vontades frustradas, que nunca se transformam em sinceros
sentimentos de que trata essa exposição de afetos atrofiados. A transposição
para o palco de um texto que em papel chega a quase 500 páginas, apresenta
dificuldades visíveis, a tal ponto que o que surge em cena é uma condensação de menos do que se dizer, e mais do modo de fazê-lo. A intervenção do
diretor Márcio Abreu é decisiva e coerente com a sua trajetória como encenador
para fazer “do nada”, narrativa teatral. A intensidade com que cria
superestrutura cênica que aborda o texto como fluxo, processo e meio, reaviva a
narrativa que, de outro modo e a julgar pela adaptação, se revela pouco
maleável ao movimento da literatura para o teatro. Abreu introduz música como pontuação
(parênteses) ao rarefeito choque de sentimentos, acrescentando a reiteração de
falas e a repetição de imagens. Para além da tradução hábil das dificuldades
apresentadas pela origem literária, o diretor insufla dinâmica teatral que
detalha o que não se pôde abarcar. A cenografia despojada de Fernando Marés de
Castilho e a música de Antonio Saraiva se ajustam à proposta do espetáculo.
Kika Kalache estabelece tom quase tão somente expositivo, distanciando-se da emoção, se avizinhando das dissonâncias
da personagem. Guilherme Piva mais hesitante em embarcar na mesma sintonia, se fixa em atuação mais linear,
enfatizando com viés dramáticos, as poucas
modulações que confere ao personagem.
Crítica/ Eclipse
Falta de rumos em direção a Tchecov |
O Grupo Galpão continua na sua frustrada busca de
encontrar-se com Tchecov. Se no ano passado, o desencontro aconteceu através de
encenação inexpressiva e desajustada de Tio
Vânia, agora a inadequação do coletivo mineiro ao autor russo se aprofundou
em Eclipse, em temporada no Teatro
Ginástico. Desta vez, importaram até um diretor russo, que a princípio se
imagina ter intimidade com a obra
tchecoviana, mas a julgar por essa coletânea de contos envelopada por
claudicante e disfuncional dramaturgia, não aplicou os conhecimentos por aqui. Sob
o escuro de um eclipse solar, cinco atores se fecham na sala-palco para
aguardar o reaparecimento da luz e o fim do ensombramento. Na espera, diversos
aspectos da existência humana, tão acuradamente tratados por Tchecov, vão se
apresentando à platéia numa encenação que trata cada um dos contos selecionados
como recitativos. À espera de que se faça ilação entre o que é dito e o comum,
o vivenciado, aquilo que precisa ser ouvido, quebra-se a solenidade com gadgets cênicos de aparente ruptura.
Critica-se a própria inação, interrompem-se atmosferas para negá-las,
ridiculariza-se a exaltação para referendá-la. As vias transversas, através das
quais o diretor Jurij Alschitz se enreda, se assemelham à constatação de que o
grupo disponível de trabalho está voltado a formas interpretativas coletivizadas, com limites para se
impregnar das minudências tchecovianas. Eclipse
se perde nos seus próprios descaminhos, descolorindo a palavra, dita como
se fosse um manual de auto-ajuda, sentenciosa e artificialmente. Em Tchecov,
seja no seu teatro, seja nos contos, subsiste clima de derrisão e de
melancolia, de vontade enfraquecida e cínica esperança, absolutamente ausentes
em mais esta investida do Galpão no autor de As Três Irmãs. O impactante cenário, pelo menos de início, com sua
imensa porta em diagonal com o nome de Tchecov inscrito como uma marca, e as
cadeiras em desenho que remetem ao construtivismo russo do início do século XX,
são complementados por projeções nem sempre bem ajustadas. Os figurinos, que
usam o vermelho como contraponto cromático, se equivocam nos detalhes. Mas é no
elenco, que o descompasso se revela mais acentuado. Sem uma regência mais
sensível dos atores, o elenco deixa a certeza de que cada um caminha por
trilhas que desbravou para si, e apens para si.
macksenr@gmail.com