Autores Brasileiros em Cena no CCBB
Crítica/ A Mecânica das Borboletas
Rômulo e Remo na fundação de lutas familiares |
Walter Daguerre, autor deste texto em cartaz no Teatro I, iniciou a desenhar seu universo dramatúrgico através de adaptações e obras de encomenda, que sempre realizou com bom artesanato. Mas sua expressão própria está em pleno processo de construção, e A Mecânica das Borboletas é resultado e fixação de vôos mais autônomos. Num estância sulista, família mostra a sua desagregação depois da partida do inquieto filho, que vai em busca de material e vivência para sua literatura, o que lhe parece impossível adquirir no solitário rincão. O seu irmão gêmeo, também com ideais (sair de moto pela América Latina, reproduzindo o percurso de Guevara), permanece junto aos pais, e esquece seus planos, para acompanhar a decadência paterna, a demência da mãe, e casar com a ex-namorada daquele que partiu. Responsável por atingir cada membro do clã com seu desejo de liberdade, Rômulo, o irmão fundador das mortes familiares, volta depois de anos para reencontrar, na origem, o que lhe falta como sustentação para prosseguir a escrever. Com a volta atinge cada um dos sobreviventes à sua partida, acionando a mecânica de um lirismo psicológico. No intento de desenvolver situação básica com contornos de veracidade, Daguerre estrutura a narrativa com coerência fabular, ainda que os personagens que gravitam em torno do irmão que abandona a família, nem sempre guardam evolução que justifique suas atitudes. A ex-namorada e a mãe preparam a chegada do agora forasteiro, para em seguida se esvaziarem. O outro irmão sofre mudança muito brusca, após repetidas sequências de confronto com o recém-chegado. Paulo de Moraes reforçou as cenas de embate, não investindo nos aspectos poéticos e enlevados desse enfretamento. O diretor, ao lado de Carla Berri, assina o cenário, que exibe potente motocicleta, que desaparece com ruidoso efeito. Mas a cenografia é menos feliz no canteirinho de flores, de pobreza melancólica. Suzana Faini defende, com suave alheamento, a mãe. Ana Kutner se defronta com personagem esboçado, que parece estar a serviço de discurso único (a cooperativa de artesanato), e função secundária. Otto Jr cria imagem de virulência e ressentimento que se ajusta ao Remo, mas o ator não tem como sustentar a transformação sem lastro por que passa o personagem. Eriberto Leão empresta ar misterioso, de início, a Rômulo, mas não equilibra a intensidade interpretativa nos momentos de revelações .
Crítica/ Breu
Ensaio sobre a solidão do escuro total |
Pedro Brício, que já tem um bom número de textos encenados, se mostra autor de linguagem mutável, impulsionada, ora por nostalgia de um passado não vivido, ora por visitas a gêneros e questões geracionais. Esta multiplicidade de caminhos demonstra que as tentativas de Brício na escrita teatral são tão variados quanto a largueza dos estilos. Os textos do autor surpreendem pela variante temática e manipulação dos meios narrativos. Breu, em cena no Teatro III, remete à época da ditadura e utiliza recursos demarcados de fabulação. Em perspectiva realista se vai iluminando os mistérios dentro do qual vive uma mulher, despojada da visão, ameaçada pelo mundo repressor à sua volta. O que vem de fora e a faz temer é acentuado pela cegueira, mesmo tendo estabelecido código de movimentos que a permite sobreviver na solidão do escuro total. A vinda de uma jovem, para ajudá-la no preparo de cachorros-quentes para a venda, cria relação que vai se delineando pela percepção mútua, uma e outra conscientes da onipresença do exterior. O desvendamento do que se esconde nas trevas, se inicia com black-out total, iluminando aos poucos os meandros de como as duas mulheres percebem a si mesmas e aquilo que as inquieta. Muito bem construída, com diálogos sem desvios da linha narrativa, com clima de tensão interna dosado por domínio dramático, o texto retrata a crescente segurança da dramaturgia de Pedro Brício. A direção dupla de Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa sintonizada com o ambiente emocional difuso, opõe a doméstica desproteção à violência surda que o ronda permanentemente. O cenário, assinado pelas diretoras e Aurora dos Campos, reproduz com envolvência a ensombrada casa-refúgio. A iluminação de Tomás Ribas percorre da escuridão à luminosidade explodida, em tempos e movimentos precisos. Andréa Horta projeta a presença vaga da moça que aos poucos vai se integrando a um mundo que, a princípio, lhe é indiferente. Kelzy Ecard desenha com sensibilidade a solitária e ameaçada personagem. Com consistente composição física como deficiente visual (é registrável a maneira como a atriz corta o legume) e sem dramatismo, Kelzy conduz a platéia pela jornada da personagem, detalhando sua força e fragilidade.
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