São Paulo
Crítica/ Os Náufragos da Louca Esperança
Discurso onírico da razão utópica |
A cena que o Théâtre du Soleil oferece está ritualizada como um teatro de imagens com forte intervenção na complexidade do nosso tempo. A arquitetura estabelecida a cada espetáculo em sua sede, na Cartoucherie, nos arredores de Paris, se reproduz, como num registro fotográfico, nas viagens que o grupo liderado por Ariane Mnouchkine faz pelo mundo. O mesmo camarim-cenário que recebe os espectadores – enquanto o elenco se prepara, o público pode acompanhá-lo antes da entrada em cena, e partilhar o seu silêncio quase religioso – se repete como um código do Soleil, tanto na França, como agora em São Paulo, e de 8 a19 de novembro no Rio, no HSBC Arena. Penetrar neste retrato ilusionista de ressonâncias do mundo que se está deixando lá fora, como acontece em Os Náufragos da Louca Esperança, é tocar a magia do onírico na incessante “busca do humano”. Para tanto, Mnouchkine se apropria do romance de aventuras de Julio Verne, Os Náufragos do Jonathan, que transporta aventureiros rumo a Austrália, que têm a viagem interrompida no sul da América por tormentas que os deixam à deriva em terras geladas de território reivindicado pela Argentina e Chile. A trama de Verne é transferida ao filme, rodado por diretor dissidente da Pathé, no período do cinema mudo. Os percalços da filmagem, em paralelo com os acontecimentos políticos da Europa, que antecederam a eclosão da Primeira Guerra, se interpenetram na construção de dramaturgia cênica, desenhada com irretocável rigor. Nas quatro horas de duração, divididas em dois atos, com dez minutos de intervalo, a impressão inicial é da habilidade em projetar fulgurante cenografia viva, em que mudanças ágeis e manipulação dos adereços impressionam pelo refinamento de uma artífice que utiliza, com domínio dos meios e invenção dos modos, pulsantes recursos teatrais. A estilização das películas do cinema mudo, a economia das palavras, a aceleração dos movimentos, reproduzindo a forma como os fotogramas eram vistos na época, atingem momentos arrebatadores, dentro de ambientação que reflete a iconografia cinematográfica e visual do início do século 20. A correlação dramática das informações políticas e a representação da feitura do filme, acabam por criar vaga impressão de que o formal pode estar escondendo relativo convencionalismo. A impressão vai se dissipando ao longo da representação, quando se percebe a trilha percorrida, que conduz a platéia pelos meandros de utopias e por caminhos de ideologias perdidas em direção a um farol que ilumina, difusamente, a esperança frente a consciência niilista do naufrágio do humano. O teatro, via cinema mudo, se intromete nesta catedral de apelos aos sentidos e no novelo da razão para nos apresentar uma Europa (a de hoje), que se mistura como a inquietação do pensamento (a de sempre), e remonta a hidra geradora das crises (a do passado). Criam-se sucessivos quadros que explodem como cortes cinematográficos, filtrados pelos bastidores artesanais de uma produção de cinema da segunda década do século passado. O elenco, portador da magia do fazer e desfazer, remonta continuamente os quadros, burilando com cinzel invisível o subterrâneo da narrativa. O fôlego interpretativo dos atores, veículos da desilusão esperançosa, é transmitido à platéia, permanentemente, arrebatada pela vigor do que assiste, e que vai sendo estimulada a encontrar, embalada pela fantasia da invenção e pelo navegar nos desejos do utópico, as razões pelas quais o humano está tão distante de faróis que iluminem caminhos. Um espetáculo essencial.
Os ingressos para a temporada carioca de Os Náufragos da Louca Esperança podem ser adquiridos, a partir de 18 de outubro, no Sesc Copacabana e no Teatro Sesc Ginástico.
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