Crítica/ Triste Fim de Policarpo Quaresma
Guerra perdida da desiludida brasilidade |
Até ao seu triste fim, Policarpo Quaresma experimentou, com patriotismo ingênuo, a amarga farsa do exercício da nacionalidade. Vítima de ilusão patriótica, adquire a consciência, herói ridículo da própria invenção de sociedade sustentada por suas raízes fundadoras, de sucessivas derrotas diante de um mundo que o transforma em bufão de suas idéias. O hospício, ao qual é levado por sua defesa da língua tupi-guarani, abriga a primeira decepção, seguindo-se a frustrada tentativa de reformar a agricultura, irremediavelmente vencido pela ação da baixa política e pela voracidade das formigas. Não menos decepcionante é sua adesão à defesa da nação, em revolta separatista, quando fica frente a frente ao poder da corrupção e da comédia da artilharia. Deste percurso, Policarpo conclui que “fizera a tolice de estudar inutilidades”, e que a pátria é pouco mais do que uma quimera. O romance de Lima Barreto, lançado em 1911, trata de um anti-herói, patético em seus propósitos, risível nas suas inalcançáveis pretensões, que desfia fracassos como alguém que foi devorado por um Brasil real, pelo persistente país de fancaria. A adaptação de Antunes Filho, em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues, empreende retorno, “o eterno retorno” do diretor às suas obsessões estéticas e aos escaninhos da nacionalidade. É inevitável referenciar a atual montagem à de Macunaíma, que Antunes dirigiu há 33 anos. Se antes, o herói era desprovido de caráter, agora é íntegro, ambos identificados pelas semelhanças do país que os moldou. Se a cena de então determinava poética de brasilidade difusa, hoje se repete com o acréscimo de conotações mais palpáveis. A transcrição do romance, essencialmente descritivo e com poucos diálogos, não intimidou o adaptador, que anteviu as possibilidades de enquadramento na sua rica moldura cênica. Há um tom farsesco, quase picaresco, que se destaca entre tantas outras memórias narrativas, criando humor em contraluz com lirismo. A movimentação dos atores, em conjunto e horizontalidade formal, é marca definitiva do diretor cultivada ao longo de várias montagens. A ausência de cenários, substituídos por adereços, figurinos, máscaras, maquiagem e máquinas de cena, individualiza o grupo, que em bloco ocupa o espaço com furor de personagem-massa. Num destes “quadros vivos”, Antunes Filho reproduz com impacto visual e desenho crítico, as obras pictóricas do positivismo, com sua exaltação à nacionalidade de estampa e de símbolos, e pelotões de vestais patrióticas e lábaros verde e amarelo. A imagética do diretor atinge o arrebatamento, quando ao som do Hino Nacional, Policarpo sapateia como um alegórico dançarino de nossos males. A música, de modinhas, canções militares e valsa, é preponderante no estabelecimento desta atmosfera de brasilidade desiludida, de sonoridade arranhada pela rouquidão da desesperança, como revela o discurso final de Policarpo. Nesta transcrição de Triste Fim de Policarpo Quaresma por Antunes Filho, a sedimentação da gramática teatral do encenador respira por alguns novos poros, abertos pela inquietação de refletir sobre a nostalgia de um país, arduamente vivido, eternamente irrealizado. O bem orientado elenco realiza com a determinação do que lhe foi proposto a delirante e cética investigação sobre o que somos ou o que irredutivelmente fomos. A projeção, indiscutível, é do ator Lee Thalor, intérprete inteligente de Policarpo, macunaímica presença como artífice do desencanto.
Crítica/ A Alma Imoral
Parábolas de sentimentos no jogo de gerar e evoluir |
Como monólogo, baseado em livro do rabino Nilton Bonder, sem qualquer situação dramática que possibilite ação e com referências religiosas que poderiam torná-lo doutrinário. A Alma Imoral, que volta ao Teatro Leblon em nova temporada, após quatro anos da sua estréia, elabora cada uma dessas características para transformá-las em delicado e sensível espetáculo teatral, no qual a qualidade do texto e a presença de Clarice Niskier são traduzidas em celebração cênica. De início, a atriz chega suavemente para contar como chegou ao texto, a circunstância do encontro num programa de televisão, a dificuldade de explicar a sua dualidade religiosa e a indignação de uma espectadora diante da abrangência de sua fé. Com bom humor, propõe embarcar no ritmo de um pensamento límpido e se deixar levar pela correnteza das palavras. Feita a proposta, começa o espetáculo propriamente. E o despojamento que se pressentia é completado com a primeira e inesperada cena, em que a discussão sobre os contrários (o titulo já prenuncia as inversões que integram corpo e alma) ganha a realidade física da racionalidade expositiva. Sem qualquer sentido normativo, A Alma Imoral estabelece um jogo de oposições que conduz à humanidade das contradições. Corpo e alma, fé e ciência, moralidade e imoralidade, tradição e traição, não são antagonismos, mas complementariedades, à procura de nova linguagem expressiva. A complexidade do mundo, o peso das criações do homem, a fé religiosa, o mal e o bem marcam a dicotomia entre gerar e evoluir. O texto é conduzido por parábolas bíblicas que ilustram os conceitos de manutenção e transgressão, capazes de criar conexões que unificam a existência. Com supervisão de Amir Haddad, que contribuiu para que o impulso cênico de Clarice Niskier se traduzisse em conversa com a platéia, a montagem alcança momentos de emoção destilada pela sinceridade que a atriz empresta ao que diz. Clarice interpreta a poética da escrita, encontrando sua fluência sonora e harmonia verbal, numa transcrição de comunicabilidade quase afetiva. O que pode ser um caminho para explicar os 140 mil espectadores que já assistiram a esse monólogo, e que já percorreu grande parte do pais, com reações sempre muito palpáveis. A conversa sobre sensibilidades, que Clarice Niskier conduz tão amavelmente, merece uma revisão, para que se renove as emoções que provocou na primeira visão.
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