Crítica/ “Estado
de sítio"
O texto de Albert Camus é de 1948, escrito no
pós-guerra europeu, em que os destroços, físicos, morais e sociais, marcaram
vidas e políticas. Em “Estado de sítio”, o autor, nascido na então colônia
argelina da França, onde desenvolveu sua literatura, atravessa as fronteiras de
origem, culturas, filosofia e dramaturgias, para se fixar em alegórica Espanha sob
o franquismo. Situada numa Cádiz metafórica, ameaçada por epidemia de peste
autoritária, a narrativa transforma personagens (Peste, Morte, Nada) em símbolos
do poder opressor contra forças vitais. Ambicioso no seu alcance
crítico-intervencionista e influente na apropriação de formas lítero-teatrais, a
escrita camusiana se sitia ao próprio estado referido no título. O autor não
ultrapassa a circunstância do período, conotando tempo e espaço com
significados mais incidentes do que representação da analogia. Quando os
diálogos secam o tom maniqueísta e as questões do “niilismo humanista” aparecem
com maior nitidez, ganham adensamento os traços de correspondência sem datação.
A versão de Gabriel Villela explode em imagens
o imaginário alegórico-poético do diretor mineiro. Não se trata apenas do
encaixe de um universo a outro, mas da inserção de uma assinatura reconhecida
visualmente à material permeável a essa cenografia da palavra. O enquadramento
da estética de Villela, cada vez mais filigranada, espelha em
maquiagem-máscara, terrores e medo. No figurino refinado nos detalhes de
tecidos e adereços, a interpretação de uma dramática. Na cenografia de árvores
desfolhadas, a projeção da aridez fatal de existir. Em “Boca de Ouro”,
recentemente em temporada carioca, a exuberância ilustrativa emoldurava Nelson
Rodrigues num afresco de dourados e
brilhos. Em “Peer Gynt”, há dois anos em São Paulo, revestia Henrik Ibsen de envolvência
onírica. Em “Estado de sítio”, em cartaz no Sesc Vila Mariana, recria em Albert
Camus o sombrio com frestas de luz. Imagens se repetem como chancelas de uma linguagem que, por mais reiterada que
seja, se reinventa a cada nova montagem. A noiva, que perpassa o quadro, com
sombrinha branca, espargindo chuva de talco, já vista com variadas roupagens,
impacta como se fora inédita. A movimentação dos atores, como um quadro vivo de
beleza e grotesco, se faz coro de vozes que entoam emoções rascantes. Novas,
ainda surpreendentes. No elenco de sintonia fina com o ritual coletivo, são
inevitáveis os destaques para Claudio Fontana (Morte), Elias Andreato (Peste),
e para Chico Carvalho (Nada), atuação avassaladora de um cético de tudo.