quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Temporada 2018/ São Paulo


Crítica/ “Estado de sítio"
 
Imagem sombria de alegoria onírica
O texto de Albert Camus é de 1948, escrito no pós-guerra europeu, em que os destroços, físicos, morais e sociais, marcaram vidas e políticas. Em “Estado de sítio”, o autor, nascido na então colônia argelina da França, onde desenvolveu sua literatura, atravessa as fronteiras de origem, culturas, filosofia e dramaturgias, para se fixar em alegórica Espanha sob o franquismo. Situada numa Cádiz metafórica, ameaçada por epidemia de peste autoritária, a narrativa transforma personagens (Peste, Morte, Nada) em símbolos do poder opressor contra forças vitais. Ambicioso no seu alcance crítico-intervencionista e influente na apropriação de formas lítero-teatrais, a escrita camusiana se sitia ao próprio estado referido no título. O autor não ultrapassa a circunstância do período, conotando tempo e espaço com significados mais incidentes do que representação da analogia. Quando os diálogos secam o tom maniqueísta e as questões do “niilismo humanista” aparecem com maior nitidez, ganham adensamento os traços de correspondência sem datação. A versão de Gabriel Villela explode  em imagens o imaginário alegórico-poético do diretor mineiro. Não se trata apenas do encaixe de um universo a outro, mas da inserção de uma assinatura reconhecida visualmente à material permeável a essa cenografia da palavra. O enquadramento da estética de Villela, cada vez mais filigranada, espelha em maquiagem-máscara, terrores e medo. No figurino refinado nos detalhes de tecidos e adereços, a interpretação de uma dramática. Na cenografia de árvores desfolhadas, a projeção da aridez fatal de existir. Em “Boca de Ouro”, recentemente em temporada carioca, a exuberância ilustrativa emoldurava Nelson Rodrigues  num afresco de dourados e brilhos. Em “Peer Gynt”, há dois anos em São Paulo, revestia Henrik Ibsen de envolvência onírica. Em “Estado de sítio”, em cartaz no Sesc Vila Mariana, recria em Albert Camus o sombrio com frestas de luz. Imagens se repetem como chancelas  de uma linguagem que, por mais reiterada que seja, se reinventa a cada nova montagem. A noiva, que perpassa o quadro, com sombrinha branca, espargindo chuva de talco, já vista com variadas roupagens, impacta como se fora inédita. A movimentação dos atores, como um quadro vivo de beleza e grotesco, se faz coro de vozes que entoam emoções rascantes. Novas, ainda surpreendentes. No elenco de sintonia fina com o ritual coletivo, são inevitáveis os destaques para Claudio Fontana (Morte), Elias Andreato (Peste), e para Chico Carvalho (Nada), atuação avassaladora de um cético de tudo.