Crítica/ “O
inoportuno”
“O inoportuno”, na tradução brasileira, e “O
zelador”, no original, como o inglês Harold Pinter o intitulou em 1960 quando
escreveu o texto, para muitos é considerado um exemplar do teatro do absurdo. O
título em português interpreta, mais do que a substantiva designação do autor, de
peça que se alinha a dramaturgia que não reflete, em toda a sua extensão, as
características de sua linguagem. Absurdo
se confunde com estranhamento, ação física com gesto interior, entrecho
realista com antinaturalismo das situações neste jogo dramático de sinais
contrários, que aponta para estilos contrastados. Ao chegar a um quarto cheio
de entulho, um morador de rua, trazido por um homem com aparente desconexão em
suas atitudes, encontra perturbadora acolhida do irmão daquele que convida o
mendigo. Cada um deles, tem vagas intenções, que reiteradas à exaustação, se demonstram
rígidas na imobilidade. O recém chegado procura sapatos, nunca apropriados,
para ir até a sua cidade em busca de documentos. O anfitrião ocasional, com
disposição sempre adiada para iniciar as obras de uma hipotética construção. O
terceiro, de convencer como gestor de negócios improváveis. Todos cristalizam
suas vontades em palavras de dúbias interpretações, criando expectativas que
não acontecem. Pinter é hábil em situações que ameaçam se desdobrar, mas que se
“resolvem” em si mesmas ou ficam soltas no ar. É uma narrativa de fluxo contínuo,
que induz a percepções, logo dissolvidas no diálogo seguinte. O autor fortalece
as bases realistas para quebra-las e insinuar algum desfecho, irrealizável na contínua expectativa de um próximo. O
cenário de Marcos Flasksman, na montagem de Ary Coslov, em cena no Teatro dos
4, contrasta a descrição realista da rubrica com o espaço aberto à
dramaticidade abstrata da encenação. De início, o irmão ocupa o palco, verifica
a ambientação, e sai. Todas as vezes que os atores aguardam a entrada em cena,
se colocam nas laterais. As atuações estão marcadas por esse caráter de representação
teatral, assinalada por dualidades: naturalismo/ruptura, condução/desvio. A
direção sustenta esse transporte narrativo, com a sensibilidade de transmitir
ritmo verbal ao elenco. Os três personagens são ambíguos, difíceis de serem
apreendidos para além de tentativas frustradas de abordagens psicológicas. Ary
Coslov conduziu o elenco, mantendo os intérpretes numa mesmo e seguro trajeto.
André Junqueira é quem dispõe de maior definição do personagem, que esteve
confinado em manicômio na adolescência. Circunscrito pelas bordas, com traços
refinados, André se destaca na cena em que Aston recorda seu internamento, ao
aplainar uma pedaço de madeira, com a fala em sincronia ao debastar dolorido
passado. Well Aguiar dosa a figura ameaçadora de Mick, tanto nos laços com a
zona obscura do irmão, quanto no embate com o visitante inoportuno. Daniel
Dantas modula o mistério em torno de Davies, mantendo irretocável o papel daquele que não tem origem, apenas o presente errante. Dantas,
desde a entrada em cena, quando começa a desenhar atuação minuciosamente
arquitetada, até ao final (não sai em momento algum do palco), ao expor a
fragilidade do personagem, dimensiona em larga escala de técnica e domínio
emocional, sua interpretação racionalista. Um belo trabalho.