Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/2/2018)
Crítica/ “Grande Sertão:Veredas
Na transposição cênica
de “Grande Sertão: Vereda”, a diretora Bia Lessa propõe embate de linguagens.
A saga do romance de Guimarães Rosa é confrontada com teatralidade épica no
distanciamento da adaptação regulada por fidelidade a qualquer de uma das expressões.
(“Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê
e entende as coisas dum seu modo”). A palavra inventada na escrita roseana, se
realiza em travessia de movimentos crus, corpos expostos, sons envolventes e imagens
fortes em reinvenção encenada. Em busca do essencial da obra literária, a
cenografia se estende ao corpo dos atores e o sertão é ambientado por lutas
carnais de vozes internas e sons animais de sentimentos selvagens. As situações
se materializam no espaço de uma instalação explorada, plasticamente, por
atuações performáticas que sustentam a aridez narrativa da locução poética. (“Olhe:
muito além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. Muito
esquisito.”). A natureza das imagens e palavras, que que se descortina do livro
original com suas labirínticas
possibilidades de leitura, reproduz-se em cena como interpretação, física e arrebatada,
que a identifica mais como painel do que com detalhes de uma paisagem de infindáveis
recantos. A versão de Bia Lessa explode em ação gestual e sonorização imperiosa,
transformando em estampido o que é sismo subterrâneo. O jagunço, que fala de si
e do mundo que o assombra, adquire a prosódia de um anti-herói sertanejo, inflexão
única e de poucas entonações. (Mire veja: o mais importante e
bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior.). São tantos os estímulos ao espectador, conectado a fones de
ouvido e com o olhar, incessantemente, provocado, que o remanso da narração, se
afoga em caudal de som e fúria. Em montagem tão solidamente construída, até
mesmo pelas suas contradições estruturais, a parte técnica (som, adereços,
cenário, figurino) e artística (direção e elenco) formam conjunto que subverte
os sentidos da plateia. Os atores, impregnados pela voracidade com que devoram
o universo romanesco, se integram a igual ferocidade com que Caio Blat
interpreta Riobaldo. (... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita
coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o
senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de
todos os matos, amém! ).