Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (21/2/2018)
Crítica/ “Tripas”
A carta de um filho, escrita ao pai inconsciente
no hospital, demarca a fronteira de “Tripas”, texto de Pedro Kosovski,
interpretado por Ricardo Kosovski. Emocional, como referência dramática, a narrativa
se expande do parentesco para invadir
outras divisas, como o limiar de vida e morte, o espaço fronteiriço dos
conflitos, a doença como metáfora das entranhas e o teatro como profissão de fé
e redenção. Os graves problemas de saúde de Ricardo desencadearam memórias e
laços viscerais com o filho Pedro, transportados como roteiro de um itinerário,
que percorre a exposição do mal físico, a viagem bloqueada às origens, e a
genealogia da convivência. O fio que é puxado no início e desenrolado,
lembrança a lembrança, com alguma dor, e
emaranhado como tripas ou histórias, chega ao final em que o novelo desfeito,
insiste em não acabar. E enreda-se num jogo de palavras que aproxima a
experiência às margens do golfo de Ácaba da finitude das vivências e a extensão
da paternidade. A carta, centro gerador e eixo propulsor que nutre a encenação,
é decomposta, na direção de Pedro Kosovski, em imagens fortemente assinaladas.
Algumas delas, de efeito explícito, como a concretude exibicionista de um
polvo. Outras, na inversão exaltada de um gesto delicado, como no beijo da
última cena. Tanto texto quanto cena parecem querer evitar o melodramático e desarmar
a vitimização, criando quadro arrebatado em contraste com a frieza descritiva
da interpretação. O dispositivo cenográfico de Lídia Kosovski, uma figura
geométrica que ocupa quase integralmente a área da representação, se mostra
mais sólida esteticamente, do que integrada ao espírito monólogo. O ator
circula, a maior parte do tempo, em torno do cenário, aberto à ocupação da
plateia, depois do convite pouco espontâneo para o deslocamento do público para
a área da representação. Ricardo Kososvski, em atuação distanciada da emoção
direta, é capaz de se perguntar se está vivo ou morto como exercício expositivo
de sofrimento vivenciado. O ator se descreve, não como protagonista de uma
experiência solitária, mas como sobrevivente que estica o fio desencapado de um
afeto superexposto.