Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/10/2017)
Crítica/ “Os sete gatinhos”
“Os sete
gatinhos” talvez não seja o melhor texto teatral de Nelson Rodrigues, mas
guarda as obsessões do autor, e segue a geografia suburbana de uma pequena
humanidade, e a grandeza mítica de determinismos existenciais. Noronha, a
mulher Aracy e suas quatro filhas, todas prostitutas, se empenham em cultuar a
pureza de Silene, a mais jovem delas, até o casamento. Abandonando qualquer outra
justificativa moral, a família, em nome de virgindade, elevada à categoria de
valor absoluto, expõe a deteriorização da hipocrisia. Ao se revelar inútil o esforço
por acumular um enxoval maculado, o cerimonial familiar repõe cada um no seu
verdadeiro lugar das falsas virtudes. Obscuros desejos levam Aracy a rabiscar
pornografia no banheiro, enquanto Noronha só se desprende do estigma de ser um
contínuo de repartição, quando se torna gerente na atividade das filhas. Há, em
Nelson Rodrigues, muito de arquétipo para além da aparência melodramática e de
sinais que confundiram e chocaram no passado. Este texto de 1958 é definido
pelo autor como “divina comédia em três atos e quatro quadros”. As palavras,
por mais que os diálogos sejam curtos e se misturem ao bom frasismo, trazem a
carga trágica das sinas. Ainda que a ambientação seja reconhecível, e os personagens tenham sotaque carioca, o
espaço vivencial existe como pulsão sem lugar certo. Quem morrerá, é alguém que
chora por um único olho, e os desígnos dos deuses da umbanda vaticinam que é a
esse homem que recairá a culpa. Bruce Gomlevski deixa, com sua montagem de
linearidade interpretativa, poucas expectativas por versão autoral de
intervenção significativa. Recria a narrativa como primeira leitura, que
sobrevoa a trama, sem sublinhar pontos que a perpassam. A dificuldade de
ressaltar essa pontuação está no próprio texto, com seus vários indícios e muitas
arapucas, mas Bruce passou ao largo. O diretor acrescentou trilha musical ao
vivo para comentar o que em si já tem eloquência verbal. A cenografia de
Fernando Mello da Costa, que resolve, convencionalmente, os planos da ação,
parece ser insuficiente para preencher as necessidades de distribuição das
cenas. A plateia e o proscênio são ocupados sem maiores efeitos, e se mostram soluções
artificiais diante da exploração pouco inventiva do amplo e profundo palco do
reaberto Teatro Nelson Rodrigues. No elenco em que as filhas Arlete (Luiza
Maldonado com poderosa voz), Aurora (Karen Coelho em tons ambíguos), Hilda e Débora
(Ingrid Gaicher e Patricia Callai em atuações disciplinadas) e Silene (Louise
Marrie com alguma malícia), predominam, os atores têm participações mais
modestas. Jaime Lebovitch defende personagem raso. Falta modulação ao médico
vivido por Luiz Furnaletto. Thiago Guerrante não se impõe como mensageiro de
notícia reveladora. Gustavo Damasceno, solto, malandro, cafajeste, desenha com
habilidade Bibelot. Alice Borges equilibra com inteligência, a vulgaridade da
mãe. Tonico Pereira dispõe as suas características marcantes de intérprete ao Noronha.