Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (22/10/2017)
Crítica/ “A festa
de aniversário”
A dramaturgia de Harold Pinter é um jogo de
dissimulação. Ainda que sua base seja realista e as tensões francamente
expostas, dúvidas e ambivalências se impõem como sustentação dramática, e elementos
de provocação, sujeitos a tantas interpretações quanto a sensibilidade
receptiva do leitor-espectador. A ação se apresenta como embate, em contraponto
à narrativa interna, em que diálogos, aparentemente banais e corriqueiros,
desconsertam pela violência mascarada e o aniquilamento de certezas. O teatro
de Pinter se apoia na entrelinha e no substrato do conflito, dentro do qual,
silêncios ruidosos e choques explosivos, convergem para a diversidade de
sentidos. Não se explicam motivações, demonstram-se. “A festa de aniversário”
poderia ser vista como fábula política do autoritarismo. Mas o autor ultrapassa
esse contexto, com visão niilista da submissão do homem a forças inescapáveis.
Manipula linguagens para fazer humor perturbador de drama absurdo, esfacelando
construções psicológicas, utilizando-se da mesma origem do realismo teatral
anglo-saxão. O casal, Meg e Petey, que hospeda Stanley, um homem misterioso de
passado vago, recebe a visita de dois desconhecidos de presença ameaçadora. A
comemoração do aniversário de Stanley, festa com data marcada para execução de celebração
sinistra, culmina com a partida daqueles que vieram para receber, com sangue, a
dívida impagável do tributo de vida. O diretor Gustavo Passo, criou com sua
cenografia e com a iluminação de Bernardo Lorga, o que é um dos pilares dos
textos de Harold Pinter: atmosfera cênica. A ambientação torna difuso o que é
estranho, acentuando o que parece real, deflagrando inquietude. A direção
mantém o compasso de espera do acontecimento central em condução narrativa bem
pausada, dosando o aparente com a brutalidade, o entrever com a imagem aberta.
Dos contrastes, Passo estabelece a unidade do elenco, outro pilar essencial na
montagem dos textos do autor inglês. Ainda que a atmosfera das interpretações não
atinja igual envolvência do visual, os atores correspondem à manutenção da carga
dramática da encenação. Andrea Dantas adota o ar alienado de Meg, incapaz de
perceber o que se passa à sua volta. Marcos Ácher transmite a percepção
amedrontada do que está ocorrendo. Alexandre Galindo transporta bem o
comportamento misterioso de Stanley no início, para a atuação física do final. Rogério
Freitas ressalta a dubieza das intenções do visitante algoz. Guilherme Melca
responde, fisicamente, ao capanga. Raíza Puget vive personagem pouco funcional.