quinta-feira, 6 de abril de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (5/4/2017)

Crítica/ “Cartola – O mundo é um moinho”
O compositor em versão doméstica 


A dramaturgia de Artur Xexéo não demonstra a que Cartola pretende dedicar o musical. Seria ao poeta de letras românticas, ou ao compositor de sambas líricos? Ao mangueirense de raiz ou ao amado de mulheres dedicadas? À fidelidade aos traços biográficos de pesquisa familiar ou à evocação dos desfiles das escolas de samba? É possível que a todas, mas sem se alinhar a quaisquer delas. Quem surge é um Cartola de identidade diluída em cronologia doméstica e ambiente característico para mais um musical-homenagem em feitio de exaltação. Na quadra da escola, em paralelo aos amores do sambista, se armam conflitos em torno da preparação de feijoada e da escolha inadequada como destaque da namorada do patrono, para que o poeta cante o enredo de sua vida. As narrativas, tanto em um plano quanto no outro, seguem estereótipos de personagens do morro, consagrados pelos velhos shows e esquetes de programas de televisão, e pela rotineira dramatização dos dados da pesquisa. A produção musical de Cartola se infiltra, mais do que compõe, a força motora do texto, que transfere um repertório de poética popular para cenário desfigurado de sua natureza cultural. Fica o registro de um compositor de sensibilidade, que melhor desfila suas dores de vida e amor quando sua música apenas se deixa ouvir. A direção de Roberto Lage amplia os meios dissonantes de musicar a biografia, imprimindo falsa ambientação de grande espetáculo, com participação eventual de cantores convidados e de deslocado humor de uma drag queen. O figurino  e o cenário se confundem no exagero do verde e rosa e na duvidosa estética das exibições para turistas. A coreografia, quando não transforma o elenco em passistas, é apenas banal. Soluções cênicas, como a presença fantasmagórica de Dona Zica no primeiro ato, encontram apoio somente na sua falta de sentido. Ao menos a qualidade da música de Cartola está assegurada pela direção musical de Rildo Hora e, senão, por destacados atores-cantores, pelo menos por intérpretes corretos. Do elenco de 18 atores, o porte de Adriana Lessa supera o esquematismo da cabrocha. A qualidade vocal de Virgínia Rosa valoriza as canções. Flávio Bauraqui se prende à semelhança física de Cartola, deixando plana a sua atuação.