Crítica/
A
Falecida
Há em A
Falecida, como em tantos outros textos de Nelson Rodrigues, o determinismo
da personagem em mergulhar na obsessão, diante da qual a existência se
transforma no percurso para realizá-la. Zulmira constrói a morte como vingança
da vida, buscando a pompa no fim para justificar as emoções suburbanas de
sempre. O que a cerca, no entanto, é bem mais implacável do que qualquer acerto
definitivo, e como na consulta à cartomante é ludibriada por justificar a vida pela
falsa permanência após a morte. O diretor Moacyr Góes condiciona a sua montagem,
em cartaz no Teatro Maison de France, com a execução instrumental da marchinha Cidade Maravilhosa, que abre o
espetáculo com o ator Leon Góes vestido de terno branco, rosto coberto de máscara
carnavalesca, malemolente em passos de samba. Está desenhado o quadro cênico tipificado
como malandro e fixado como imagem cristalizada
de certa geografia humana da cidade. Essa conotação quase pictórica, acentua,
de maneira niveladora, o conceito de tragédia
carioca de A Falecida,
subtraindo-lhe o vigor dramático. O que Zulmira se impõe como sina, destino a ser celebrado com a
exposição da morte, desaparece em meio a configuração externa, mais retrato do
que mergulho. O espetáculo se abriga nesta padronização carioca da malandragem,
fragilizando os movimentos subterrâneos daquela que subverte comportamentos impelida
pelo acúmulo de frustrações, pretendendo se redimir com o ritual da morte. O
tom se desajusta, mais ainda, com o visual (cenário, adereços e figurinos) de
Teca Fichinski, que reforça o aspecto jocoso e divertido imposta pela direção. As portas do cenário são
parcialmente integradas à movimentação da cena, e os adereços (como o telefone
e o uso de um ator como espelho) pouco criativos, além da precária utilização
do alçapão. No elenco – dos disciplinados Sérgio Kauffmann, Ricardo Damasceno,
Daniel Carneiro e Augusto Garcia, disciplinados – destaca-se a voz de Simone
Centurione. Leon Góes, com emissão e interpretação veladas não é provocado a
contracenar com Bianca Rinaldi, que permanece mecânica e passivamente linear com
uma Zulmira sem viço.
Crítica/ Rain Man
Versão adocicada de encontro fraternal |
O filme em que é baseada a versão teatral em
cartaz no Teatro dos Quatro tinha, além da ótima interpretação de Dustin
Hoffman, bom roteiro original, que conduzia
e conquistava com habilidade a emotividade as plateias de cinema no final dos
anos 80. Na transposição para o palco, mais de duas décadas depois, as
características de origem são mantidas com a igual artesania, repetindo a mesma
costura na manipulação das regras de playwriting
bem alinhavado. A relação de irmãos, um autista, o outro ressentido com o
passado, se estabelece a partir da morte do pai. Do prólogo, quando são
apresentados os personagens, até o final, inflado de adoçamento de atitudes e
descobertas de afetividade, abre-se espaço para que o público se comova com o
encontro fraternal. A trama é conduzida com dosagem aplicada com domínio do
tempo dramático, de maneira a que se perceba e compreenda as firulas da ação. Traços cuidadosos para narrativa infalível, comunicativa e com ganchos suficientes para prender o espectador. O diretor José
Wilker imprime agilidade à narrativa para fazê-la nervosa, movimentada, voltada
para os estímulos, mais do que para a reflexão. Ainda que a movimentação
cenográfica pelos atores emperre a
intensidade geral, Rain Man não
descuida de capturar a atenção do público, mesmo com ambientação emocional
menos adensada. De certa maneira, a assistência reage de forma distendida, tal
como o diretor conduziu a montagem. As interpretações apontam neste sentido.
Rafael Infante mantém o tom leve e solto
por entre as transformações por que passa o personagem. Fernanda Paes Leme também
não demonstra muitas variações na sua atuação. Marcelo Serrado, em composição verdadeiramente
construída, provoca efeito inverso na percepção da realidade existencial do
autista. O público ri a cada uma das suas intervenções.
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