sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Felipe Hirsch e o Tempo Cênico

 

  

       (“Agora Era Tudo Tão Velho” – 2024)

“Agora Era Tudo Tão Velho – Fantasmagoria 4” é o título da mais recente encenação de Felipe Hirsch, vista há pouco em São Paulo. Tempos que se confundem, ilusão dos efeitos mágicos são o material que o diretor manipula fragmentos literários e vozes dissonantes que se constroem no palco como sombras do agora e luzes do passado. Síntese-balanço de uma dramaturgia cênica única, de grafia própria e linguagem com assinatura, o espetáculo converge para refinada maturação dos meios expressivos do encenador. Textos de autores tão semelhantes por suas dissonâncias, reúnem-se numa mesma listagem narrativa: 

- Paulo Leminski (“No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. A burguesia saudou a liberdade da arte, comprando-a.”/“E obras de arte são rebeldias. Sua manifestação na linguagem. E obras de arte chamamos poesia, inestimável “inutensílio.“)
   
- John Cage (“Existe algo que seja o silêncio? Será que tem sempre alguma coisa para ouvir, jamais sossego e paz? Faz sentido perguntar porquê?”)

- Caetano W. Galindo e Guilherme Gontijo Flores (“Se nada é de verdade, eu preciso estar aqui, agora, real, na frente de vocês. Mas eu preciso ser, eu preciso dar sentido, ter sentido. Eu preciso ser uma peça.”)

- Caetano W. Galindo (“O princípio de que é a ideia de que se uma arma carregada aparece em cena, em um determinado momento, de uma peça, ela deve disparar até o final da peça. / ...porque não há um final da história. Não há uma conclusão./ ... Podem aplaudir agora. Convocado apenas pra fazer esse rumor ali, esse eco de que a peça existiu. Eco é algum nível de fantasmagoria, né? Em algum nível, a plateia, em boa parte do teatro, é uma fantasmagoria. Pro bem ou pro mal. Agora fiquei me perguntando muito sinceramente o que seria eco para a gente, para a nossa cultura.”)

-  “Bang Bang” (1971), de Andrea Tonacci (Filme que subverte técnicas, gêneros narrativos, satirizando cada um deles, pela superexposição e exagero.)

Ouve-se, repetidamente, ao entrar no teatro, sons fracionados, em um embaralhar de pistas (a voz de Elza Soares, frase de canção que diz; “eu quero desistir”). Embaralham-se ruídos e palavras numa sequência partida a que o espectador será envolvido em mais de duas horas. Confrontado  como ouvinte de palavras e situações em que arte, dúvidas, perplexidades e o sentido da existência são exploradas como desmonte de múltiplas narrativas cênicas. O teatro é quebrado na expressividade da sua linguagem, reforçado na  integridade comunicativa de sua rebeldia poética, Cenas se sucedem sem  “lógica” narrativa, conduzidas pela palavra selecionada de autores que descrevem sentimentos do mundo e da arte, atualizados pelas incertezas contemporâneas.  O que o espectador tem como  permanente neste mergulho no atual, é o passado e presente do teatro. Vários e discrepantes meios narrativos são experimentados e lançados à plateia, ora como propostas estéticas, ora como meios persuasivos de atração/provocação. São cenas em sequências embaralhadas, que se concluem em si mesmas, algumas vezes, ou vão se reencontrar em momentos díspares. Um exemplo: um ator solitário no palco, diz fazer 32 perguntas, que, verdadeiramente,  são mais de 150, repetidas numa mesma inflexão. Percebe-se o movimento de impaciência crescente do espectador, até que alguns poucos deixam, ruidosamente o teatro. O efeito de tantas perguntas (“Não parece besteira continuar a fazer perguntas quando há tanta coisa urgente de verdade por fazer?”) sem respostas conclusivas. Corte: cenário mambembe para interpretações explodidas.  O esquete que reproduz de filme-desbunde-caótico de década de 1970, se encaixa na frequência das oscilações e temperaturas do espetáculo, São alternâncias de ritmos cênicos e quebra de expectativa de encontrar alguma linearidade narrativa, que apoie a estrutura do espetáculo. A palavra fragmentada sustenta o fluxo teatral, insinuante, recortado, provocador, amargamente poético, conduzindo  a plateia a assistir uma arte tão antiga e permanente, como o teatro, ser confrontada com o presente, inquietante, duvidoso, oco, sem perspectivas. (“É preciso continuar, não consigo continuar, eu vou continuar.”)   

 Cenas  do diretor


Quase que por contraste, o diretor Felipe Hirsch repete a fórmula que o acompanha há anos, mais cristalizada a partir de “Puzzle” (2013), deixando entrever o domínio dos meios que asseguram assinatura indelével às suas encenações. Se de início já experimentava o que viria s ser o seu indiscutível universo cênico (“Por um Incêndio Romântico”, 1999), depuraria ao longo da carreira sua gramática na dezenas de espetáculos teatrais, ópera (“Orphèe”), e investidas no cinema. Inequívoco admirador da cultura anglo-saxã, em especial aquela que se manifesta através da ficção e da tela, além da música pop, seja como base dramática ou linguagem, Hirsch, como cronista (escreveu no jornal O Globo) estabelece com esse universo cultural de eleição, vínculos à memória e sentimentos geracionais. Sua criação converge para a vivências de seu tempo, relacionando dores contemporâneas à individualização de sentimentos, e assim ressoar o silêncio coletivo. Seu repertório demonstra o vigor de traços que penetram nos escaninhos da cena e nos desafios do pensamento. 


 (“Lazarus” – 2019)

“Lazarus” tem forma muito própria e peculiar de se perceber como musical. O puzzle músico-ficcional em que o inglês David Bowie acondiciona seu repertório de letras esquivas ao filme “0 Homem que Caiu na Terra”, do qual foi o protagonista, pode ser visto como detonador de memórias de “impermanência e morte”. Nada que se pareça, estritamente, a uma narrativa do gênero (ação e canções), muito menos a um show com citações cênicas. É tudo isso, e também mais alguma coisa: estranha, dissonante, mutante, andrógina, cheia de representações intrigantes, como os muitos rostos maquiados de Bowie. “Lazarus” confirma as características de Felipe Hirsch com assinatura legível. Os meios expressivos são sofisticados e tratados de modo serial, numa sequência de quadros que se compõem como painel de sensibilização. do-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O texto é secundário como história e coadjuvante como narrativa, integrando-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O que é acentuado, está em paralelo ao olhar em busca de significados. É provável, que o espectador que desconheça David Bowie, possa assistir a “Lazarus” como um espetáculo realizado num universo paralelo. Mas até ele, certamente, viverá a experiência de ser levado por construção cênica de bases sólidas, e instigado pelo prazer de um mergulho na “impermanência e morte” de um tempo. O nosso.


(“Fim” -  2019)

É na finitude que a contemporaneidade se torna ainda mais inescapável, e de que trata o diretor Felipe Hirsch em “Fim”. Fronteiras da arte, história, linguagens, tempos, se diluem nos processos de criação, vividos como enfrentamentos em batalhas que, a meio, já apontam para derrotas. O exercício da invenção parece esgotado pela ausência de perspectivas menos nebulosas, num momento em que experiências de buscar novos códigos esbarram na impermeabilidade da recepção. Como em “Puzzle”, que marcou viragem na carreira de Hirsch, a montagem se arma em quebra-cabeças de quatro quadros, escritos pelo argentino Rafael Spregelburd. Em “O Fim da História”, grupo teatral algo mambembe, ensaia um clássico qualquer, quando é exposto a incêndio destruidor, e condenado à repetição e comprometido na sua sobrevivência pelos espectros da atualidade. Mais do que posição niilista, que o título promete e a encenação não compartilha integralmente, “Fim”  é desabafo-manifesto de um corte sem suturas.


 (“Não sobre o amor” – 2008)

‘Felipe Hirsch é cirúrgico na construção ascética de “Não sobre o amor”, do poeta russo Viktor Shklovsy, em espetáculo destituído de firulas dramáticas e carregado de rigor estético. De formalismo detalhista, a montagem traduz o texto com o mesmo distanciamento  contido nas cartas entre o poeta e a amada, expressando o que aparenta ser nostálgico em emoção verdadeira das lembranças.  Ainda que o diretor tenha conduzido a cena de maneira tão racional, emerge real emoção que se impregna do vácuo em que o personagem flutua, sem eixo que o localize como exilado de si mesmo. 


 (“A memória da água” – 2001)

“Em A memória da água”, texto da inglesa Shelagh Stephenson, as personagens voltam sempre ao passado para encontrar por lá justificativas e, desse movimento, entre tempos, se valem  das lembranças, vagamente verdadeiras. Felipe Hirsch, coerente como  perspectiva de direção, se volta para a universo cênico que volatiza a memória. A tela transparente que, separa o palco-plateia, cria névoa no olhar e teia fina de atração e repulsão. O diretor ignora os resquícios melodramáticos e aponta para as entrelinhas do riso agridoce e o afogamento melancólico.


(“A vida é cheia de som e fúria” – 2000)

A  escolha da obra literária de Nick Horny para a transposição cênica de Felipe Hirsch parece obedecer às possibilidades que o romance oferece como trilha musical para o estado um tanto inercial do personagem diante da vida. A adaptação reproduz as “repetições” da narrativa da existência estática e de quem projeta a auto-piedade em longo e ensimesmado monólogo. A direção imprime movimento cinematográfico a roteiro de recorrências, com cortes nervosos e reiterações de cenas, com voltas na ação como se as imagens estivessem sendo editados em um filme.             

 “Por um Incêndio Romântico “ -1999

Terence McNally ao criar jogo entre os desígnios místicos que comandam as ações de um deus humanizado e o drama psicológico de mulheres em balanço existencial, estabelece choque cultural, responsável pelos aspectos de humor do texto. A montagem de Felipe Hirsch revela saudável  insatisfação com a linearidade, já que cria espaço quase abstrato, a ponto de deixar impressão de que se inspirou em imagens, concepções que remetem a referências bem evidentes: de Bob Wilson a Gerald Thomas.










  



       

sexta-feira, 1 de março de 2024


Plateia Privilegiada

Com o desaparecimento da crítica jornalística profissional de teatro, engolida pelas crises econômica, formal e de leitores da imprensa, a atividade sumiu das publicações remanescentes. Acuada pela interferência fatal das mídias sociais, a prática se experimenta no digital, sem ainda encontrar mediação entre a linguagem acadêmica e voluntarista, e  a equalização da comunicabilidade. A última geração de críticas, que por décadas, mantiveram colunas em jornais, lançam em livros, a longa, persistente, quase contínua, análise, reflexão e registro de temporadas que compõem a história da cena nacional por mais de 50 anos. Coletâneas que selecionam a produção e o pensamento de quem vivenciou  a atualidade da notícia e a prestação ao consumo do leitor.  E sustentou, muitas vezes, num equilíbrio delicado, a consciência da impermanência do ato teatral e o cultivo e respeito à sua própria integridade intelectual na relação com as plateias de cada tempo. De gerações diferentes, mas contemporâneas em grande parte de suas vidas profissionais, Mariangela Alves de Lima e Barbara Heliodora assinam a autoria de coletâneas que reúnem parte de seus extensos exercícios críticos. A paulista Mariangela, de 1972 a 2010, sempre em  O Estado de São Paulo; a carioca Barbara, desde 1957, no extinto Tribuna da Imprensa, e em veículos, como Jornal do Brasil, revista Visão, (todos também desaparecidos) e em O Globo, até um ano antes de sua morte, em 2015. Em “Na Plateia” (Edições Sesc), das 557 críticas publicadas no Estadão, a organizadora Marta Raquel Colabone selecionou 290, modulando painel que condensa refinado conhecimento de quem se pautou por sobriedade no estilo da linguagem e na acuidade da reflexão. “Barbara Heliodora – Escritos Sobre Teatro” (Perspectiva),  organizada por Claudia Braga, se divide pelo tempo e percurso da crítica pelas diversas atuações no campo do teatro: textos teóricos, vida teatral, teatro e estado,  e críticas (de 1957 a1994).   


Em conversa despretensiosa, diretor teatral comentava: “nunca se sabe se a Mariangela gostou do espetáculo.” É verdade, mas desde que se entenda a crítica de jornal apenas como indicador para assistir ao espetáculo. Se lida sob as próprias ferramentas de que o texto se utiliza e como espelho analítico que o conhecimento reflete, a obra de Mariangela é de translúcida inteligência, linguagem clara (seu texto é impecável) e erudição, vivificadas por escrita não-professoral. Cada avaliação parte da integralidade do pensamento acurado, que se individualiza pelas características dos gêneros, e passagem de tempo. Com fidelidade à primazia do “literário”, mais evidente no início das publicações, atenta às investidas contemporâneas, com olhar sempre perspicaz, mantém a relação palco-plateia através da autoridade que conferia a palavra como circulação de ideias. Leitores que acompanharam a longa carreira de Mariangela, como a organizadora da edição, reclamam da extensão de suas publicações, curtas pelo que propõem como largura de seus voos. Na sua escrita, distendida ao longo da sua prática jornalística, permanece fiel à sua maturação intelectual e à visão sensível e rigorosa de inovações cênicas ou estéticas ocasionais. A urgência de prazos, e os protocolos de edição do jornal não comprometeram a densidade com que penetrava nos detalhes da criação e na reflexão do conjunto. Sempre houve para ela, um tempo de reflexão que acompanhava a mediação do tempo de escrita. A medida não se desviava do equilíbrio do pensar com o  dizer. Fiel a si mesma e a seu papel de crítica, estudiosa e intelectual, Mariangela nunca esqueceu (ou a pressão editorial não a deixava esquecer) que escrevia para o leitor de jornal. Respeitava a sua inteligência, servindo-o com cardápio de ideias, límpidas, e nada didáticas ou professorais. Um exemplo na crítica a uma encenação de “Mãe Coragem”, que num único parágrafo faz citações de forma integradora. “ (O diretor) se alinha à interpretação que Jean-Paul Sartre dá ao teatro brechtiano, considerando-o um clássico que, a maneira de Racine, nos mostra as coisas “a frio”, separadas de nós, inacessíveis e terríveis, coisas que acreditávamos governar, mas que se desenvolvem fora do nosso controle.” 

"Os Sertões" José Celso Martinez Correa

E analisa com extrema finura os dilemas nas montagens de Tchekhov no Brasil. Sobre uma encenação de “Tio Vânia” na década de 2000, escreve: “ (...) espetáculos se desvencilharam, com maior ou menor êxito, do delicado verismo psicológico da concepção de Stanislavski. Quem sabe com um suspiro de alívio dos realizadores, uma vez que a contenção, a minúcia e os meios-tons da vida anímica são, para a nossa cultura teatral, mais difíceis de exprimir do que os contornos amplos das imagens simbólicas.” E no registro de texto de Edward Albee, aponta o percurso do equilíbrio delicado no tratamento de dramaturgia em evolução. “Quem já aprendeu a projetar a escala grandiosa do drama renascentista, experimentou o delicado discurso introspectivo do drama tchekhoviano e treinou os mecanismos ágeis e estilizados do “boulevard” saberá reconhecer as interseções do teatro moderno que servem de base a construção da cena contemporânea)”. Numa das raras vezes em que se mostra, aparentemente, “conclusiva”, é certeira: “É um trabalho difícil, porque tem a intenção de seduzir esteticamente sem omitir os horrores da doença, da deformidade e da pura crueldade. O elenco de “Os Sete Afluentes do Rio Ota” executa com maestria essa proeza de tornar complementares o belo e o horrível.”. 0u ambienta a linguagem triturada de Gerald Thomas na sua expressividade: “É do que não consegue compreender, daquilo que se manifesta de modo acidental e da tentativa de comunicar que se constitui a comunicação cênica, Trata-se, enfim, da matéria do sonho. (...) Ou matéria do inconsciente, um mundo pós-freudiano.” E fez, quase estudos paralelos entre a obra literária e o palco, na análise das encenações de José Celso Martinez Corrêa de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. E na transcrição cênica de Antunes Filho de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, em que relaciona memorialismo a epopeia, ao “extrair o encantamento estético do que é “bruto, despojado e pobre”.”


Nos últimos anos no exercício da crítica, Barbara Heliodora foi mais julgada como personagem, temível, irascível, inflexível, do que como analista, rigorosa e fiel a preceitos de estudiosa de teatro. Desde quando começou a publicar críticas e artigos na imprensa se mostrou como alguém que se debruçava sobre o teatro como uma arte a ser perscrutada como valor da expressão humana, e para qual chamava a atenção dos seus leitores e alunos. Os clássicos gregos eram incontestáveis referências. Shakespeare,  aventura intelectual de vida. O teatro brasileiro, uma história ainda a ser contada, na qual assumia papel de mestra-formadora. Em tão longo tempo em que se converteu em  destaque, a princípio como baliza da crítica carioca, e em décadas mais recentes, como figura amoldada pela classe teatral, a um papel que não lhe assentava inteiramente. Havia nas críticas de Barbara, “uma objetividade quase cirúrgica”, como observou Claudia Braga, organizadora do livro. E por outro lado, uma passionalidade e um sentido “didático” (entendido como elemento educador e de formação de público). Seus detratores, que em grande parte se sentiam mais ameaçados por sua capacidade demonstrativa, do que por uma certa posição que a fazia bastante afirmativa. Acusavam-na de reduzir algumas de suas opiniões a adjetivos (certo, errado, bom, mau), esvaziando-as, sem possibilidade de discussão sobre o seu sentido. Ainda que superficiais, essas observações não comprometiam a convicção da análise, mesmo que a justeza da síntese pudesse ser tomada com imperativo absoluto, embrulhado em alguma ligeireza. O bisturi analítico se apresentava já no seu início na imprensa. Um dos exemplares mais significativos dessa acuidade analítica, pode ser constada no artigo (longo e rigorosamente estudado), publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1960: “Bernard Shaw no Teatro”. Outra era a imprensa, e nova era a crítica. Barbara significou a transição do antigo elenco de críticos, para o surgimento de nomes e posições diferentes em relação à prática da crítica teatral na imprensa. Uma das fundadoras do Circulo Independente de Críticos Teatrais (CICT), entidade que marcou um ponto de inflexão na crítica carioca nos anos 1960. Foi ainda responsável pela ascensão de Yan Michalski a seu posto no Jornal do Brasil. Algumas opiniões balizadoras, permearam os escritos de Barbara. Uma delas era a excelência técnica dos atores ingleses, que admirava pela competência no uso de seus meios expressivos. Sem compará-los aos brasileiros, apontava fragilidades nos nacionais, como provocação didática, mesmo sem esconder o seu incômodo: “não se compreende o que dizem.”. Tolerava alguns espetáculos despretensiosos (foi solitária na “defesa” do teatro besteirol”), exatamente pela falta de maiores ambições, mas não desculpava aqueles que, por excesso de pretensão, não soubessem o que diziam e como fazê-lo. Ao abrigo do conceito “teatro contemporâneo”, desconfiava de experimentos e vanguardas improvisadas, as quais, considerava, que não alcançavam as tentativas de questioná-los ou ultrapassá-los.  

Foram raríssimas as unanimidades em tão extensa carreira, a maior delas, Fernanda Montenegro. Fiel admiradora e reverente analista da dimensão do talento da atriz, acompanhou-a com visão “objetiva”, mas com piscadelas de indisfarçável prazer.   

“Fernanda Montenegro é inesgotável de encanto e emoção, e seu trabalho preserva sempre a qualidade de improvisação que tão bem esconde a sólida base técnica que lhe permite dominar o palco e o público. Embora não tenha sido escrita para ela, Fernanda Montenegro bem merece a canção Elle quelque chose, ele quelque chose la; temos a certeza de que Artur Azevedo estaria satisfeito.(...) Ratto (Gianni Ratto, diretor do espetáculo) encontrou a fórmula a que todos podiam se adaptar, e todos trabalharam , desde o diretor até o figurante que não pisou no palco mais de trinta segundos, com o mesmo amor que Artur Azevedo teve pelo teatro.”
(“O Mambembe” – 21/11/1959 – Jornal do Brasil)


“Fernanda Montenegro sustenta com uma categoria insuperável a extraordinariamente difícil linha do papel de Vivie; papel duro, difícil, por vezes desagradável, que não permita à atriz nem por um momento dar largas à manifestação integral  de emoção que já tem demonstrado em tantas ocasiões que assim requeriam. Rigidamente disciplinada, perfeitamente integrada no desejo do diretor, Fernanda Montenegro seguiu à risca o plano de Ratto, mas conseguiu, apesar de todos os obstáculos, uma Vivie que existe, realmente acima da mera realização de uma linha. Voz, postura, gestos, inflexões, tempo, tudo está medido, justo, certo. (...) Brilhante, vibrante, profissional na mais alta acepção da palavra é o que podemos dizer do trabalho de Fernanda Montenegro. De uma coisa não há dúvida: o que vemos atualmente no Teatro Copacabana é Shaw.”
(“A Profissão da Sra. Warren” – 7/5/1960 - Jornal do Brasil em 7/5/1960)

“(...) é a simbiose de Fernanda Montenegro com o universo de Adélia Prado que permite que o texto se torne uma experiência teatral autêntica, mesmo que o personagem de Fernanda, apenas “uma mulher”, não fique identificado, porém seja magistralmente individualizado pela capacidade da atriz de tornar absolutamente seus os pensamentos e emoções que Adélia expressa em sua obra.”
(“Dona Doida” - 25/7/1994 – O Globo)



Senhora Crítica

“Barbara Heliodora como crítica é, essencialmente, uma espectadora apaixonada e intensa do teatro. Ao lado da sólida formação, do professoral, conhecimento da história e da dedicação à obra de Shakespeare, foi da plateia que analisou milhares de espetáculos que a fizeram testemunha e participante da cena brasileira por 55 anos. A frequência e o dever profissional que para ela mantinham o hábito e despertavam o prazer, não deixavam de existir, até mesmo quando, num exercício histriônico de mal humor, brandia sua arma verbal contra a qualidade da maioria do que assistia. Dirigia aos criadores a sua carga teórica  com escrita clara e, muitas vezes, contundente. Informava ao leitor, com adjetivação indicativa, o valor do que acreditava ser “bom teatro”. Nas suas avaliações procurava capturar a natureza efêmera do ato teatral através do que se mostra mais permanente: texto e ator. Devotava ao primado da palavra e a grandeza dos clássicos o seu olhar mais arguto, estendido ao papel de tradutora, exercido com o mesmo rigor e respeito como lia os originais. Admitia, com reservas, a transposição do verso em prosa, e defendia a construção dramática como elemento de relevância absoluta. Odiava monólogos e ao contrário do que se imagina, fazia apostas que resultariam em êxitos. Solitária entre os críticos dos anos 80, anteviu no teatro do besteirol um movimento que arejou a comédia brasileira. Era generosa com os atores a quem admirava com sincero respeito, ainda que severa quando tinha restrições a seus trabalhos. Fernanda Montenegro, a amiga de décadas, se igualava em convivência com Ítalo Rossi e por extensão a Sergio Brito e a Jacqueline Laurence. Esse elenco de amigos se formou a partir da mais entusiástica crítica escrita por Barbara, logo depois e no calor da estreia de “O Mambembe” no Teatro Municipal, em 1959. Ficava extremamente sensibilizada com as agressões que recebia de vaidades contrariadas, mas não se abstinha de discutir os espetáculos no plano das ideias, caso o interlocutor se dispusesse a confrontá-las. O seu humor, de sotaque inglês e verve mineiro-carioca, não aparecia em suas críticas, ácidas, fundamentadas, personalistas, independentes, que se mantiveram por tanto tempo como referência, sempre compartilhadas com o público de seu lugar e percepção privilegiados na plateia.”    

Publicado, em 11/4/2015, em O Globo por Macksen Luiz, que sucedeu Barbara Heliodora na crítica teatral do jornal carioca.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Voz Solta dos Musicais

Nas temporadas teatrais pós-pandemia, nenhum desenho de tendência parece ter algum fôlego para se sustentar, ou até mesmo para se anunciar possível. Ainda que seja apenas exercício especulativo, sem qualquer comprovação numérica mais exata, os espetáculos musicais têm ocupado  a cena, numa sucessão e frequência que os distinguem como meios de produção e técnicas próprias. Parte deles consegue patrocínios razoáveis para estrear para períodos curtos no palco, com publicidade difusa do digital e o improvável boca-a-boca de suposto público cativo do gênero. De concreto, podem ser alinhados, de janeiro a outubro, três dezenas de musicais em estilos diversos: originários da Broadway e West End, de linguagem brasileira (temas e sonoridade nacionais), em desenho biográfico no formato de exaltação e homenagem, e no disfarce de show. Nesses dez meses, pelo menos quatro montagens podem ser classificadas como produtos de importação com selo de procedência.

Giulia Nadruz: “Funny Girl”

“ Funny Girl- A Garota Genial” é encenado com objeto retilíneo (sem desvios dos padrões), obedecendo as curvaturas de entretenimento (canções e evocação do music hall). Receituário pronto, é só temperar com algumas referências às imagens de outros musicais (coreografia, cenário e figurino adequados), e a aposta na sorte de um hit (canção que “salte” do espetáculo, e ganhe sucesso fora do enquadramento do palco). ‘Funny Girl” tem tudo isso. E pitada de melodrama romântico e, finalmente, o produto fica disponível para venda. Desde a década de 1960, quando estreou na Broadway, e  foi levado ao cinema, demostra alguma resistência ao tempo. A montagem brasileira o reanima com o fôlego de sessentão com razoável condicionamento.
“BeetleJuice”, adaptação do cinema, procura relembrar, e também ampliar no teatro, o humor de gags e entrecho ingênuo da versão da tela. Se no nosso sotaque, citações brasileiríssimas compõem a trilha sonora e o histrionismo do elenco, não é possível esquecer a nacionalidade do passaporte da encenação. As convenções e os cacoetes do modelo estão intocáveis nas canções escritas  em pauta de caderno  de encargos e em escala  de efeitos e técnicas saturadas. A maior contribuição nacional se concentra na decisão empresarial de montar “BeetleJuice”.
“O Jovem Frankenstein”, com mesma origem fílmica, não se desvia das normas dominantes dos teatros nova-iorquinos, mas com uma diferença no translado: a assinatura de Charles Moeller (direção) e Claudio Botelho (versão das letras). A dupla, desde os primeiras tentativas de transcrever nos palcos a cultivada admiração por musicais da Broadway (“Cole Porter – Ele Nunca Disse que me Amava”, “As Malvadas”) se empenha em ser fiel, em espírito, à alma do estilo. Ligados, por quase trinta anos, ao repertório “clássico” (de “A Noviça Rebelde” a “Como Vencer na Vida Sem Fazer Força”,  de “O Violinista no Telhado”  a “Gipsy”), circularam por áreas vizinhas (“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos”, “Sassaricando – E o Rio Inventou a Marchinha”, “Beatles Num Céu de Diamantes”). Em “Frankenstein...”, a eficácia na montagem de Charles/Botelho não se deixa arranhar por este musical rotineiro de frágil comicidade e esquecível trilha. Claudio e Charles foram também responsáveis por “Mamma Mia!¨, musical com libreto indolor para trilha anestesiante do Abba. Há pouco que fazer diante de tal material, mas o diretor e o versionista conseguiram o que talvez seja o maior êxito do gênero este ano. O público lotou o Teatro Multiplan, na Barra da Tijuca que, ao que parece, está se transformando na sede das “tradicionais “ comédias musicais no Rio.

Ana Carbatti: “Museu Nacional”

A cidade é também o endereço do Cia. Barca dos Corações Partidos, que em pouco mais de uma década, estabeleceu novas técnicas e sonoridades na linguagem do musical brasileiro. Este ano, apresentou “Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo)”, tema infenso ao calor dos brilhos e a temperatura alta dos efeitos. Na curta, mas marcante carreira do grupo, já estão desenhadas as características originais e inconfundíveis dos músicos-atores.  Com dinâmica cênica, em que a música é mais do que elemento complementar, a trilha ganha representação dançada de libretos ora biográficos (Jackson do Pandeiro, Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga), ora construção simbiótica de música, dramaturgia e movimento com gramática inconfundível (“Auê”).

Bibi Ferreira: “Minha Querida Lady”

No histórico dos musicais no Brasil com selo de importação, “My Fair Lady” (“Minha Querida Lady”, na tradução nacional”)  abriu os portos, na década de 1960, para a entrada do modelo. Em transcrição direta, com diretores e equipes técnicas  com know-how da franquia, o que se assistia aqui era cópia integral do que se criou por lá. “Hello Dolly”, “Chorus Line”, ”Evita”, “Fantasma da Ópera”, “Les Misérables”, “Chicago”, “Rei Leão”, se sucederam nas décadas seguintes, formando geração de atores, cantores e bailarinos que correspondiam, cada vez mais e com maior capacitação e ajustamento, aos padrões exigidos pelas empresas exportadoras. Em paralelo, desenhava-se, em especial na década de 1990, um tipo de musical à brasileira, com personagens da música e do teatro, que eram reverenciados como  fórmula de integrar o repertório da vida com a vivência artística. Nesta temporada, essa fórmula, já desgastada, reencontrou em produções, nem sempre muito cuidadas, a possibilidade de atrair plateia. Dedicados a cantores e compositores (Ney Matogrosso, Clara Nunes, Gonzaguinha, Cazuza, Belchior, Dominguinhos, Zé Ramalho), a décadas, e estilos, literatura e até a hotéis, a oferta foi variada, mas um tanto tímida de fugir aos maneirismos das repetições.

domingo, 8 de outubro de 2023

Voo Livre

 


Talvez seja um ensaio triplo sobre cenas de “A Gaivota”, de Tchekhov. Ou fragmentos cênicos na tentativa de estabelecer unidades contrastadas de linguagens. E ainda, exercício performático de filosofar sobre o caos que nos cerca. Também jogo teatral que desloca regras e técnicas do processo (projeto) para o produto (publico). “Voo Livre” pode ser tudo isso, e mais alguma coisa que instigue o espectador para decolagem própria. Em cartaz por quatro semanas no Sesc Copacabana, o tríptico teatral dirigido por Marcio Abreu se divide por títulos - Arte, Tempo, Futuros –, que se combinam no mesmo arcabouço de sustentação, mas com expressões autônomas. Aparentemente, sem pretensões maiores, senão a de tatear desdobramentos que a narrativa russa e convidados (poetas, filósofos, ensaístas) sugerem ao encenador-autor, a proposta arranca com a liberdade de experimentar (meios, modos, maneiras). Na base desta investigativa dramaturgia cênica, há o que dizer, especular, tocar em tensões (da arte, da realidade, do desconhecido). Sem qualquer resquício de impositivos ou de certezas, mas de somente percurso poético, em que a força da palavra é o que sustenta o olhar aberto ao instável, ao incerto, ao improvável. Em uma frase com alguma ironia sobre o como fazer e dizer, uma das atrizes resume ao que se assiste: “filosofando em torno de caos lá de fora”.  O tempo do teatro se confunde com o verso de Leda Maria Martins e melodia de Felipe Storino: “No tempo o corpo bailarina bailarina/no corpo o tempo espirala espirala/  nos cosmos tudo baila revoa remoinha”. O tempo de vida e criação acaba num estalar de dedos, não importa os rituais e desejos de prolongá-lo ou adiá-los. A intermitência do tempo deixa a existência na rotina de gestos  e quedas, em movimentos de partidas e expulsões, de passagens sem nenhuma permanência. À volta de mesa e cadeiras do cotidiano, o mundo e a arte se enredam na brutalidade e poética, fixando-se neste voo livre de uma cena instigante, simbolizada na imagem de escultura em parque de Berlim, em memória da vítimas do nazismo. Como diz Nina, personagem de “A Gaivota”, na leitura sensível de Renata Sorrah: “Os homens, os leões, as águias e as perdizes, os veados, os gansos, as aranhas, as estrelas marinhas e todas as criaturas invisíveis aos nossos olhos, tudo que vive, tudo e todos, após percorrer o seu triste ciclo mortal, estão agora extintos”.          

        



domingo, 3 de setembro de 2023

Brás Cubas e seu Duplo

Em simultâneo, duas montagens do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, estão em cena com diferentes diretores e autógrafos maiúsculos. Moacir Chaves assina “Menino é o Pai do Homem” (título de um dos capítulos do livro), na Cidade das Artes, e Paulo de Moraes, “Brás Cubas”, no Teatro II do CCBB. Não parece coincidência, essa duplicidade de visões sobre uma mesma obra, mas abordagens teatrais paralelas da primorosa construção literária que se debruça, com ironia e mordacidade, sobre tantos fins e nenhum legado, “senão aquele da nossa miséria”. Machado, que escreveu peças e exerceu a crítica, se mostra  íntegro em encenações tão contrastantes e inventivas . 

“Menino é o Pai do Homem”: direção de Moacir Chaves

Na entrada da sala, um recanto sugere ambientação do tempo de Machado, levando a pensar que tal visual anteciparia montagem evocativa, de contornos documentais. Primeira impressão que se desfaz ao entrar na sala, e ser abrigado por dispositivo cênico multimídia, de efeito plástico, a que o iluminador Paulo César Medeiros definiu como “Nave de Luz”, e o cenógrafo Sérgio Marimba desenhou como palco-instalação, em que cortinas transparentes e espectadores em frontalidade com a “ação”, são envolvidos por imagens e palavras. O texto machadiano, essencialmente literário é contido em  universo visual para encontrar sua teatralidade. A exposição cênica recria o ritmo da leitura dos capítulos, mantendo em linha a força expressiva do original e a modulação interpretativa do elenco. Os atores em pequenas oscilações vocais e andamento corporal definido, percorrem os meandros machadianos sem quaisquer destaques ou  ênfases. Caminham por sua inteireza. A concepção uniforme , seja de voz e de movimento, refina o tom narrativo nos pontos mais sensíveis que perpassam o que diz o “defunto-autor”. A envolvência da plateia, não se dá apenas pelas projeções (anúncios de venda de escravos, fotos da geografia urbana, frases soltas), mas como a direção, com a mesma acuidade do escritor, aponta para as contradições de sociedade insepulta,  

“Brás Cubas”: direção de Paulo Moraes

Na dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça, e na encenação do grupo Armazém,  “Brás Cubas” se multiplica por três: o morto que conta; o personagem que vive; e o autor que “atualiza” o tempo. Em tantos corpos, o homem que fala de si e de seu mundo, não se frustra de usar da ironia para descrever “negativas”, as suas e do seu arredor. Num espaço cenográfico de elementos contemporâneas (quadro de giz, microfone, músico), essa trindade atua sobre o texto, cumprindo papel de sublinhar o que pode estar oculto na voz do morto. Machado interfere com comentários e alusões a si mesmo, enquanto Brás narrador dialoga com o Brás captado em ato. Essa divisão, permite que as aproximações temporais sejam traduzidas por cena intensa e ruidosa de imagens atraentes. A direção e a adaptação buscam integrar a palavra na ação, naquilo em que possa trazê-la à cena de forma explícita, sem barateá-la nas conotações atribuídas pela “adaptação”. Pelo contrário, valoriza e amplia seus significados, em provocativos e coloridos capítulos/cenas. Paredes são pichadas, hip-hop é ouvido, cabeça de hipopótamo aparece de surpresa, cortejo carnavalesco é revisto como citação, em quadros figurados que trazem vigor de palco a fluxo narrativo de livro. A cena final, com peso de tantas negativas, ganha tom poético, e amplia, no balanço em cavalinho de brinquedo, o testamento de uma vida, em que “não houve míngua nem sobra”, mas peso de negativas.            


quinta-feira, 27 de julho de 2023

Oficina do Zé

 


O número 520 da Rua Jaceguai, no bairro do Bexiga, em São Paulo, é sede do grupo Oficina, desde da década de1960, quando o jovem coletivo teatral, liderado, desde então, e até a sua morte neste 2023, por José Celso  Martinez Corrêa se instalou. Num cenário urbano inóspito, de vizinhança de sobradinhos decadentes e fachada acanhada, o Oficina se impõe como endereço de referência para a cena brasileira por um artífice de obras únicas, linguagens interpostas, ruídos dissonantes, voz autoral, e rituais afro-dionisíacos. No terreno em declive, a construção acompanha a extensa profundidade da área, com plateia em dois planos laterais, oferecendo visão para o palco-rua-passarela, em via de mão dupla para público e atores. Mas de início não era assim. Quando o grupo ocupou a precária construção da época, o Zé, como sempre foi chamado por seu elenco, já experimentava o melhor aproveitamento do complicado espaço. Assim como investigava suas habilidades com repertório que incluía tentativas dramatúrgicas (“0 Vento Forte para um Papagaio Subir” e “A Incubadeira”) e outros tantos autores (dos americanos Clifford Oddets e Tennesee Williams aos europeus Max Frisch e Valentin Kataev), o espaço adquiria o formato de bigorna, logotipo impresso na fachada e imagem do “artesanato” produzido no seu interior. Foi sob esta bigorna que o iniciante encenador esquenta o malho para forjar os elementos que ganhariam, em seis décadas de moldes abrasivos, o polimento de seu temperamento criativo de extensão única. 

A sua primeira direção, “Pequenos Burgueses”, do russo Máximo Gorki, apontava para um rumo que parecia leva-lo ao teatro de viés político-social, mas solidamente baseado em técnica stanislaviana. Nos termos em que foi concebido, o espetáculo de 1963 pode ser considerado “clássico” do realismo, nos quais o detalhamento da formalização dramática, denotava domínio cênico que não se supunha em diretor tão jovem. Num interregno de quarto anos, com um incêndio no meio, José Celso circulou por aparente vazio produtivo, na tentativa de manter o espaço vivo, mesmo que em pulsão enfraquecida. De comédia descartável às remontagens requentadas, nada indicava que algo estava se gestando acima dos escombros das chamas do prédio e do encenador sendo reconstruindo. 
"Rei da Vela"

Ao estrear “O Rei da Vela”, em 1967, elos estéticos se unem de modo surpreendente, enquanto linguagens artísticas são rompidas numa improvável unificação. O que parecia impossível (encenar o texto de Oswald de Andrade), determina abusiva intervenção criativa, sem roubar a integridade do original. Revivê-lo e dar-lhe alma cênica, foi plenamente conseguido ao sovar os padrões circulantes, carnavalizando a nacionalidade e expondo o alcance inovador da direção. A repercussão de “O Rei da Vela” atordoou a crítica, instigou a intelectualidade (o movimento tropicalista na música se originou no teatro e se consolidou na academia), e deixou confusa a plateia, Seguiu-se quase uma década de alternância do espetáculo em cena. 

Em 1968, Zé Celso é convidado por empresário carioca para dirigir “Roda Viva”, texto incipiente do jovem Chico Buarque, que ocupa o Teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Ao frágil material disponível, emprestaria vigor cênico na nudez e na explodida intervenção de um coro de atores,  recém saídos da escola de teatro. A esse despudor em tempos ditatoriais, acrescentaria uma bandeja com carne crua, servida a uma plateia que esperava encontrar o mesmo lirismo do autor de “A Banda”, vencedora de recente festival de música. A reação que no Rio foi de perplexidade e de olhar atento dos órgãos policiais, em São Paulo foi de ação brutal e violenta contra o espetáculo. De volta ao palco da Jaceguai, o diretor artístico, líder, condutor dos rumos a perseguir, se concentra em Bertold Brecht, de quem encenaria “Galileu Galilei” (1968) e “Na Selva das Cidades” (1969).  Ainda em busca de repertório que combinasse arte e política, partiu para uma certa iconoclastia brechtiana, terminado a abjuração de Galileu com os atores dançando twist ao som de Cely Campelo em “Banho de Lua”. Na “Selva das Cidades”, um ringue de luta delimitava a área de destruição completa da cenografia, rompendo, simbolicamente, as paredes do teatro, lançando o grupo para o espaço alargado de outras áreas investigativas. É quando viagem ao Brasil do Living Theater confunde-se com variadas viagens de auto-revelação do Oficina, que vagueiam por tentativas de vislumbrar horizontes para além da palavras: (“Utopia (Utopia dos Trópicos)” (1971) e “Gracias, Señor” (1972). Reduzido a um coro desgarrado de atores-acólitos, pelo último remanescente do “antigo” grupo, Renato Borghi um dos fundadores, abandona o coletivo, selando o fim de um tempo. Para conservadores, sem parâmetros para avaliar o que propunha aquele bando de “desbundados”, era o derradeiro suspiro de sanidade do diretor incontrolável. 

Tudo indicava que alguma explosão aconteceria, mas nada indicava seu rumo. Os filamentos dessa cena explodida, vista sob  quaisquer padrões anteriores, mostravam apenas que as rupturas pareciam inevitáveis, que haviam forças geradoras de algo a ser concebido, reveladas somente uma década depois. “As Três Irmãs” (1972) deixava entrever que a inquietude do diretor, a coletivização criativa e o caráter aparentemente anárquico, estavam mantidos pela herança de técnicas stanislsvianas e no manuseio ainda obscuro de técnicas sem catalogação. O Oficina estava vivo, mesmo sem futuro aparente. Zé Celso foi preso em 1974, saiu do país, esteve em Portugal, filmou em Moçambique, e voltou quatro anos depois. Um tanto perdido – confessou a alguns diretores suas dúvidas sobre como conduziria a sua oficina teatral. Nesta volta, cheia de perguntas,  retomou com  “Pequenos Burgueses” (1990) o contato com o palco do Bexiga, e um ano depois montaria “As Boas”, tradução “zécelsiana” de “Les Bonnes”, de Jean Genet. Nas ruidosas conceituações tão próprias ao diretor, nova nomenclatura foi estabelecida para abrigar o que estava sendo gestado em surdina nos bastidores do terreno-terreiro a ser construído . A partir de “Ham-let” (1993), o Oficina passaria a ser titulado de Uzyna Uzona. Shakespeare era submetido a maratona que se estendia por mais de cinco horas. Fatiado, servido em celebração ritualística, Hamlet se confundia com personagens de “As Boas” contracenando com Polônio, caracterizados com os mesmos figurinos e maquiagem de “O Rei da Vela”. Indicava o messianismo para conduzir a plateia a participar de ritos religiosos, comandado por um pregador em fúria demolidora, envolvido por “impureza” técnica, mas segura base formal.
"As Bacantes"

Em “As Bacantes” (1995), o tom processional e dionisíaco está ligado ao espaço físico, totalmente reconstruído pela arquiteta Lina Bo Bardi. Eurípedes fica exposto num espaço de representação de disputa entre forças retrógradas (que o diretor identifica com segmentos da sociedade brasileira) e libertárias (associadas à sexualidade e as drogas). Zé Celso estabelece esse confronto através de intermitente provocação, num jogo de opostos (o rito cênico carnavalizado pelo espetáculo) e em referências insuspeitas (na  marchinha carnavalesca  “Mamãe, eu quero” cantada pelo coro grego-brasileiro e no toque físico em algum espectador sorteado na plateia). “Cacilda” (1998), projeto antigo do Zé, foi escrito por sete anos e resultou em mil páginas de texto e tantas versões no palco. Cacilda Becker é menos retrato de atriz, e mais protagonista da história cultural do país. Investida de médium, “incorpora uma energia contida pelo coma cultural”. Metáfora do coma que antecipou a morte da atriz, a montagem em quatro versões e incontáveis horas cita o AI-5 e a Semana de Arte de 1922, e revela um Gogot em delírio como “um animal (minotauro) libertário.” Citações e analogias vão ao encontro da biografia teatral do autor-diretor, ampliadas pela narrativa orgiástica. Em processo convergente das montagens recentes e na radicalidade do exercício de atualização, José Celso corporifica com “Os Sertões”  (2002 a 2006) a sonoridade, barulhenta, provocativa, dissonante, única, de uma teatralidade desmedida. Somente uma “usyna” de operário tão aplicado imprimiria tanta “uzona” à obra de Euclides da Cunha. Tal como em “O Rei da Vela”, texto que não se imaginava encenável, a guerra de Canudos explode em escala épica, ora como ópera carnavalesca, ora como evocação afro-política-dionisíaca em rito cênico. A oficina que o Zé inventou, com a qual conviveu e se fundiu, manufaturando o seu teatro  e a própria vida, está fincada no prédio paulista, que um dia teve formato de bigorna, e em outro de passarela para um samba teatral inigualável.                 

domingo, 2 de julho de 2023

"A Cerimônia do Adeus"

Sérgio Britto e Natalia Thimberg, direção de Paulo Mamede (1987) 

No livro “A Cerimônia do Adeus”, Simone de Beauvoir registra os últimos dez anos de vida de Jean–Paul Sartre, em acerto de contas de convivência intensa. No texto de Mauro Rasi, o mesmo título adquire significado de acerto de contas consigo mesmo, A cerimônia dramatúrgica é o rito de passagem do jovem Juliano. De volta à cidade do interior paulista, de onde saiu com pouco mais de vinte anos, Juliano revive o cotidiano doméstico da mãe oprimida e limitada pela rotina e vivência provinciana, que à época, já se desenhava obscurantista no país. O descompasso existencial com o real, acirra no jovem o desejo difuso de rompimentos, de criar em plano delirante o que pela ação parece inalcançável. O personagem reinventa aquilo que hostiliza sua sensibilidade, encontrando nos livros, a evasão que se assemelha a liberdade. “Só há duas decisões - diz Juliano -: submeter-se ou usar a sua imaginação.” No secretismo do seu quarto, dialoga com o casal Sartre-Simone como livros-companheiros, a quem expõe angústias e fragilidades. É a invenção que torna aceitável os pais verdadeiros e a fantasia que justifica a redenção da mentira. O personagem, alter ego do autor, assinalou reviravolta na carreira de Rasi, estreando a trajetória definitiva e marcante da sua dramaturgia “biográfica”, a partir de então (1987). Abandona, e faz questão de renegar a produção anterior, que não queria que esta essa estreia, fosse vinculada à sua “dramaturgia “besteirol”. “A Cerimônia do Adeus” inauguraria nova fase, antecipando tias e outras membros da família, e memórias redivivas num universo teatral com assinatura grifada. O que não mudaria, até a última peça em 2003, ano de sua morte, foi o humor, traço pessoal de fidelidade à tradição da comédia de costumes brasileira. Apesar do indisfarçável tom confessional, a sua construção dramatúrgica tem a medida para alcançar efeitos bem afiados. A criação de Simone e Sartre como personagens vivos, com os quais Juliano convive na área libertadora do quarto, não é somente um achado/truque, mas uma plot/cena do casal, que vai-se explicando, com humor sutil, desenrolado fio narrativo entre real e imaginário. O arcabouço dramático, que contém muito de febre e delírio cômico, perpassa pelo poético, quando o texto arranha o afeto agridoce de Juliano por aqueles que estão à sua volta: por determinação ou escolha. A primeira versão da peça, em 1987 no Teatro dos Quatro, no Rio, direção de Paulo Mamede, harmonizava a imaginação do quarto-santuário e o espaço físico do conflito. Mauro Rasi recebeu o troféu de melhor autor de todas as premiações disponíveis (Molière e Mambembe), além da montagem receber outros dois destaque para Nathalia Thimberg (Simone) e Sergio Britto (Sartre). 

Eucir de Souza, Beth Goulart e Lucas Lentini , direção de Ulysses Cruz (2023)

Um ano depois, em nova montagem, agora em São Paulo, assinada por Ulysses Cruz, o espectador que assistiu a versão carioca, ficou surpreso com a visão paulistana. A plateia de lá, perguntaria a razão de tantos prêmios e o porque do reconhecimento do público de cá. Cruz não emitiu muitos sinais de identificação com o texto, reduzindo-o a crônica que esvaziava as  possibilidades evocativas em favor de uma supra realidade banalizada. Três décadas depois, Ulysses está de volta ao mesmo texto,  em montagem muito semelhante àquela que, originalmente, já demonstrava a pouco identidade no passado. Os desajustes da cena, na atual versão, se revelam, de início, pela  ausência de cenários. Os dispersos elementos (livros, teclado confinado no bastidor, vaso de samambaia, telão branco de fundo) e as portas laterais condenam a narrativa a um involuntário “vaudeville memorialista”, destruindo a convenção, rompendo com a chave básica da dramaturgia: o quarto de Juliano. É de onde a fantasia  se cria e é manipulada, desvendando o jogo dramático da existência física de Sartre e Simone. Para além desse espaço visualmente vazio e de pouca densidade como ambientação, as projeções são meramente ilustrativas e um tanto rebarbativas na conexão com a palavra. A linha interpretativa imposta ao elenco, apaga o humor do texto, nivela a trama numa corrente plana, e  reduz as características das personagens a desenhos borrados. Algumas intervenções desabilitam o arcabouço da montagem. A cena inicial é uma delas, como também o descompasso nas atuações do casal existencialista e da mãe Aspásia. O Juliano que aparece em cena, substitui o papel central de narrador pela função de figura secundária em constante e inútil troca de figurino.