Macksen Luiz
Críticas, opinião, notícias e indicações teatrais.
sexta-feira, 2 de agosto de 2024
Felipe Hirsch e o Tempo Cênico
sexta-feira, 1 de março de 2024
E analisa com extrema finura os dilemas nas montagens de Tchekhov no Brasil. Sobre uma encenação de “Tio Vânia” na década de 2000, escreve: “ (...) espetáculos se desvencilharam, com maior ou menor êxito, do delicado verismo psicológico da concepção de Stanislavski. Quem sabe com um suspiro de alívio dos realizadores, uma vez que a contenção, a minúcia e os meios-tons da vida anímica são, para a nossa cultura teatral, mais difíceis de exprimir do que os contornos amplos das imagens simbólicas.” E no registro de texto de Edward Albee, aponta o percurso do equilíbrio delicado no tratamento de dramaturgia em evolução. “Quem já aprendeu a projetar a escala grandiosa do drama renascentista, experimentou o delicado discurso introspectivo do drama tchekhoviano e treinou os mecanismos ágeis e estilizados do “boulevard” saberá reconhecer as interseções do teatro moderno que servem de base a construção da cena contemporânea)”. Numa das raras vezes em que se mostra, aparentemente, “conclusiva”, é certeira: “É um trabalho difícil, porque tem a intenção de seduzir esteticamente sem omitir os horrores da doença, da deformidade e da pura crueldade. O elenco de “Os Sete Afluentes do Rio Ota” executa com maestria essa proeza de tornar complementares o belo e o horrível.”. 0u ambienta a linguagem triturada de Gerald Thomas na sua expressividade: “É do que não consegue compreender, daquilo que se manifesta de modo acidental e da tentativa de comunicar que se constitui a comunicação cênica, Trata-se, enfim, da matéria do sonho. (...) Ou matéria do inconsciente, um mundo pós-freudiano.” E fez, quase estudos paralelos entre a obra literária e o palco, na análise das encenações de José Celso Martinez Corrêa de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. E na transcrição cênica de Antunes Filho de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, em que relaciona memorialismo a epopeia, ao “extrair o encantamento estético do que é “bruto, despojado e pobre”.”
(“Dona Doida” - 25/7/1994 – O Globo)
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Voz Solta dos Musicais
Giulia Nadruz: “Funny Girl” |
“BeetleJuice”, adaptação do cinema, procura relembrar, e também ampliar no teatro, o humor de gags e entrecho ingênuo da versão da tela. Se no nosso sotaque, citações brasileiríssimas compõem a trilha sonora e o histrionismo do elenco, não é possível esquecer a nacionalidade do passaporte da encenação. As convenções e os cacoetes do modelo estão intocáveis nas canções escritas em pauta de caderno de encargos e em escala de efeitos e técnicas saturadas. A maior contribuição nacional se concentra na decisão empresarial de montar “BeetleJuice”.
“O Jovem Frankenstein”, com mesma origem fílmica, não se desvia das normas dominantes dos teatros nova-iorquinos, mas com uma diferença no translado: a assinatura de Charles Moeller (direção) e Claudio Botelho (versão das letras). A dupla, desde os primeiras tentativas de transcrever nos palcos a cultivada admiração por musicais da Broadway (“Cole Porter – Ele Nunca Disse que me Amava”, “As Malvadas”) se empenha em ser fiel, em espírito, à alma do estilo. Ligados, por quase trinta anos, ao repertório “clássico” (de “A Noviça Rebelde” a “Como Vencer na Vida Sem Fazer Força”, de “O Violinista no Telhado” a “Gipsy”), circularam por áreas vizinhas (“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos”, “Sassaricando – E o Rio Inventou a Marchinha”, “Beatles Num Céu de Diamantes”). Em “Frankenstein...”, a eficácia na montagem de Charles/Botelho não se deixa arranhar por este musical rotineiro de frágil comicidade e esquecível trilha. Claudio e Charles foram também responsáveis por “Mamma Mia!¨, musical com libreto indolor para trilha anestesiante do Abba. Há pouco que fazer diante de tal material, mas o diretor e o versionista conseguiram o que talvez seja o maior êxito do gênero este ano. O público lotou o Teatro Multiplan, na Barra da Tijuca que, ao que parece, está se transformando na sede das “tradicionais “ comédias musicais no Rio.
Ana Carbatti: “Museu Nacional” |
A cidade é também o endereço do Cia. Barca dos Corações Partidos, que em pouco mais de uma década, estabeleceu novas técnicas e sonoridades na linguagem do musical brasileiro. Este ano, apresentou “Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo)”, tema infenso ao calor dos brilhos e a temperatura alta dos efeitos. Na curta, mas marcante carreira do grupo, já estão desenhadas as características originais e inconfundíveis dos músicos-atores. Com dinâmica cênica, em que a música é mais do que elemento complementar, a trilha ganha representação dançada de libretos ora biográficos (Jackson do Pandeiro, Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga), ora construção simbiótica de música, dramaturgia e movimento com gramática inconfundível (“Auê”).
Bibi Ferreira: “Minha Querida Lady” |
No histórico dos musicais no Brasil com selo de importação, “My Fair Lady” (“Minha Querida Lady”, na tradução nacional”) abriu os portos, na década de 1960, para a entrada do modelo. Em transcrição direta, com diretores e equipes técnicas com know-how da franquia, o que se assistia aqui era cópia integral do que se criou por lá. “Hello Dolly”, “Chorus Line”, ”Evita”, “Fantasma da Ópera”, “Les Misérables”, “Chicago”, “Rei Leão”, se sucederam nas décadas seguintes, formando geração de atores, cantores e bailarinos que correspondiam, cada vez mais e com maior capacitação e ajustamento, aos padrões exigidos pelas empresas exportadoras. Em paralelo, desenhava-se, em especial na década de 1990, um tipo de musical à brasileira, com personagens da música e do teatro, que eram reverenciados como fórmula de integrar o repertório da vida com a vivência artística. Nesta temporada, essa fórmula, já desgastada, reencontrou em produções, nem sempre muito cuidadas, a possibilidade de atrair plateia. Dedicados a cantores e compositores (Ney Matogrosso, Clara Nunes, Gonzaguinha, Cazuza, Belchior, Dominguinhos, Zé Ramalho), a décadas, e estilos, literatura e até a hotéis, a oferta foi variada, mas um tanto tímida de fugir aos maneirismos das repetições.
domingo, 8 de outubro de 2023
Voo Livre
Talvez seja um ensaio triplo sobre cenas de “A Gaivota”, de Tchekhov. Ou fragmentos cênicos na tentativa de estabelecer unidades contrastadas de linguagens. E ainda, exercício performático de filosofar sobre o caos que nos cerca. Também jogo teatral que desloca regras e técnicas do processo (projeto) para o produto (publico). “Voo Livre” pode ser tudo isso, e mais alguma coisa que instigue o espectador para decolagem própria. Em cartaz por quatro semanas no Sesc Copacabana, o tríptico teatral dirigido por Marcio Abreu se divide por títulos - Arte, Tempo, Futuros –, que se combinam no mesmo arcabouço de sustentação, mas com expressões autônomas. Aparentemente, sem pretensões maiores, senão a de tatear desdobramentos que a narrativa russa e convidados (poetas, filósofos, ensaístas) sugerem ao encenador-autor, a proposta arranca com a liberdade de experimentar (meios, modos, maneiras). Na base desta investigativa dramaturgia cênica, há o que dizer, especular, tocar em tensões (da arte, da realidade, do desconhecido). Sem qualquer resquício de impositivos ou de certezas, mas de somente percurso poético, em que a força da palavra é o que sustenta o olhar aberto ao instável, ao incerto, ao improvável. Em uma frase com alguma ironia sobre o como fazer e dizer, uma das atrizes resume ao que se assiste: “filosofando em torno de caos lá de fora”. O tempo do teatro se confunde com o verso de Leda Maria Martins e melodia de Felipe Storino: “No tempo o corpo bailarina bailarina/no corpo o tempo espirala espirala/ nos cosmos tudo baila revoa remoinha”. O tempo de vida e criação acaba num estalar de dedos, não importa os rituais e desejos de prolongá-lo ou adiá-los. A intermitência do tempo deixa a existência na rotina de gestos e quedas, em movimentos de partidas e expulsões, de passagens sem nenhuma permanência. À volta de mesa e cadeiras do cotidiano, o mundo e a arte se enredam na brutalidade e poética, fixando-se neste voo livre de uma cena instigante, simbolizada na imagem de escultura em parque de Berlim, em memória da vítimas do nazismo. Como diz Nina, personagem de “A Gaivota”, na leitura sensível de Renata Sorrah: “Os homens, os leões, as águias e as perdizes, os veados, os gansos, as aranhas, as estrelas marinhas e todas as criaturas invisíveis aos nossos olhos, tudo que vive, tudo e todos, após percorrer o seu triste ciclo mortal, estão agora extintos”.
domingo, 3 de setembro de 2023
Brás Cubas e seu Duplo
Em simultâneo, duas montagens do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, estão em cena com diferentes diretores e autógrafos maiúsculos. Moacir Chaves assina “Menino é o Pai do Homem” (título de um dos capítulos do livro), na Cidade das Artes, e Paulo de Moraes, “Brás Cubas”, no Teatro II do CCBB. Não parece coincidência, essa duplicidade de visões sobre uma mesma obra, mas abordagens teatrais paralelas da primorosa construção literária que se debruça, com ironia e mordacidade, sobre tantos fins e nenhum legado, “senão aquele da nossa miséria”. Machado, que escreveu peças e exerceu a crítica, se mostra íntegro em encenações tão contrastantes e inventivas .
“Menino é o Pai do Homem”: direção de Moacir Chaves |
Na entrada da sala, um recanto sugere ambientação do tempo de Machado, levando a pensar que tal visual anteciparia montagem evocativa, de contornos documentais. Primeira impressão que se desfaz ao entrar na sala, e ser abrigado por dispositivo cênico multimídia, de efeito plástico, a que o iluminador Paulo César Medeiros definiu como “Nave de Luz”, e o cenógrafo Sérgio Marimba desenhou como palco-instalação, em que cortinas transparentes e espectadores em frontalidade com a “ação”, são envolvidos por imagens e palavras. O texto machadiano, essencialmente literário é contido em universo visual para encontrar sua teatralidade. A exposição cênica recria o ritmo da leitura dos capítulos, mantendo em linha a força expressiva do original e a modulação interpretativa do elenco. Os atores em pequenas oscilações vocais e andamento corporal definido, percorrem os meandros machadianos sem quaisquer destaques ou ênfases. Caminham por sua inteireza. A concepção uniforme , seja de voz e de movimento, refina o tom narrativo nos pontos mais sensíveis que perpassam o que diz o “defunto-autor”. A envolvência da plateia, não se dá apenas pelas projeções (anúncios de venda de escravos, fotos da geografia urbana, frases soltas), mas como a direção, com a mesma acuidade do escritor, aponta para as contradições de sociedade insepulta,
“Brás Cubas”: direção de Paulo Moraes |
Na dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça, e na encenação do grupo Armazém, “Brás Cubas” se multiplica por três: o morto que conta; o personagem que vive; e o autor que “atualiza” o tempo. Em tantos corpos, o homem que fala de si e de seu mundo, não se frustra de usar da ironia para descrever “negativas”, as suas e do seu arredor. Num espaço cenográfico de elementos contemporâneas (quadro de giz, microfone, músico), essa trindade atua sobre o texto, cumprindo papel de sublinhar o que pode estar oculto na voz do morto. Machado interfere com comentários e alusões a si mesmo, enquanto Brás narrador dialoga com o Brás captado em ato. Essa divisão, permite que as aproximações temporais sejam traduzidas por cena intensa e ruidosa de imagens atraentes. A direção e a adaptação buscam integrar a palavra na ação, naquilo em que possa trazê-la à cena de forma explícita, sem barateá-la nas conotações atribuídas pela “adaptação”. Pelo contrário, valoriza e amplia seus significados, em provocativos e coloridos capítulos/cenas. Paredes são pichadas, hip-hop é ouvido, cabeça de hipopótamo aparece de surpresa, cortejo carnavalesco é revisto como citação, em quadros figurados que trazem vigor de palco a fluxo narrativo de livro. A cena final, com peso de tantas negativas, ganha tom poético, e amplia, no balanço em cavalinho de brinquedo, o testamento de uma vida, em que “não houve míngua nem sobra”, mas peso de negativas.
quinta-feira, 27 de julho de 2023
Oficina do Zé
"Rei da Vela" |
"As Bacantes" |
domingo, 2 de julho de 2023
"A Cerimônia do Adeus"
Sérgio Britto e Natalia Thimberg, direção de Paulo Mamede (1987) |
No livro “A Cerimônia do Adeus”, Simone de Beauvoir registra os últimos dez anos de vida de Jean–Paul Sartre, em acerto de contas de convivência intensa. No texto de Mauro Rasi, o mesmo título adquire significado de acerto de contas consigo mesmo, A cerimônia dramatúrgica é o rito de passagem do jovem Juliano. De volta à cidade do interior paulista, de onde saiu com pouco mais de vinte anos, Juliano revive o cotidiano doméstico da mãe oprimida e limitada pela rotina e vivência provinciana, que à época, já se desenhava obscurantista no país. O descompasso existencial com o real, acirra no jovem o desejo difuso de rompimentos, de criar em plano delirante o que pela ação parece inalcançável. O personagem reinventa aquilo que hostiliza sua sensibilidade, encontrando nos livros, a evasão que se assemelha a liberdade. “Só há duas decisões - diz Juliano -: submeter-se ou usar a sua imaginação.” No secretismo do seu quarto, dialoga com o casal Sartre-Simone como livros-companheiros, a quem expõe angústias e fragilidades. É a invenção que torna aceitável os pais verdadeiros e a fantasia que justifica a redenção da mentira. O personagem, alter ego do autor, assinalou reviravolta na carreira de Rasi, estreando a trajetória definitiva e marcante da sua dramaturgia “biográfica”, a partir de então (1987). Abandona, e faz questão de renegar a produção anterior, que não queria que esta essa estreia, fosse vinculada à sua “dramaturgia “besteirol”. “A Cerimônia do Adeus” inauguraria nova fase, antecipando tias e outras membros da família, e memórias redivivas num universo teatral com assinatura grifada. O que não mudaria, até a última peça em 2003, ano de sua morte, foi o humor, traço pessoal de fidelidade à tradição da comédia de costumes brasileira. Apesar do indisfarçável tom confessional, a sua construção dramatúrgica tem a medida para alcançar efeitos bem afiados. A criação de Simone e Sartre como personagens vivos, com os quais Juliano convive na área libertadora do quarto, não é somente um achado/truque, mas uma plot/cena do casal, que vai-se explicando, com humor sutil, desenrolado fio narrativo entre real e imaginário. O arcabouço dramático, que contém muito de febre e delírio cômico, perpassa pelo poético, quando o texto arranha o afeto agridoce de Juliano por aqueles que estão à sua volta: por determinação ou escolha. A primeira versão da peça, em 1987 no Teatro dos Quatro, no Rio, direção de Paulo Mamede, harmonizava a imaginação do quarto-santuário e o espaço físico do conflito. Mauro Rasi recebeu o troféu de melhor autor de todas as premiações disponíveis (Molière e Mambembe), além da montagem receber outros dois destaque para Nathalia Thimberg (Simone) e Sergio Britto (Sartre).
Eucir de Souza, Beth Goulart e Lucas Lentini , direção de Ulysses Cruz (2023) |
Um ano depois, em nova montagem, agora em São Paulo, assinada por Ulysses Cruz, o espectador que assistiu a versão carioca, ficou surpreso com a visão paulistana. A plateia de lá, perguntaria a razão de tantos prêmios e o porque do reconhecimento do público de cá. Cruz não emitiu muitos sinais de identificação com o texto, reduzindo-o a crônica que esvaziava as possibilidades evocativas em favor de uma supra realidade banalizada. Três décadas depois, Ulysses está de volta ao mesmo texto, em montagem muito semelhante àquela que, originalmente, já demonstrava a pouco identidade no passado. Os desajustes da cena, na atual versão, se revelam, de início, pela ausência de cenários. Os dispersos elementos (livros, teclado confinado no bastidor, vaso de samambaia, telão branco de fundo) e as portas laterais condenam a narrativa a um involuntário “vaudeville memorialista”, destruindo a convenção, rompendo com a chave básica da dramaturgia: o quarto de Juliano. É de onde a fantasia se cria e é manipulada, desvendando o jogo dramático da existência física de Sartre e Simone. Para além desse espaço visualmente vazio e de pouca densidade como ambientação, as projeções são meramente ilustrativas e um tanto rebarbativas na conexão com a palavra. A linha interpretativa imposta ao elenco, apaga o humor do texto, nivela a trama numa corrente plana, e reduz as características das personagens a desenhos borrados. Algumas intervenções desabilitam o arcabouço da montagem. A cena inicial é uma delas, como também o descompasso nas atuações do casal existencialista e da mãe Aspásia. O Juliano que aparece em cena, substitui o papel central de narrador pela função de figura secundária em constante e inútil troca de figurino.