sábado, 25 de novembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/11/2017)

Crítica/ “Doce pássaro da juventude”
Tennessee Williams em escala menor 

“Doce pássaro da juventude” está distante do melhor de Tennessee Williams, representado pela poética cruel de “A margem da vida”, e sensibilidade ferida de “Um bonde chamado Desejo”. A trajetória do casal de circunstância, a atriz em declínio Alexandra Del Lagoa e o postulante a ator Chance Wayne, tem o ponto de chegada dos seus conflitos em cidade sulista. Racista, patriarca poderoso domina as relações familiares e manipula com hipocrisia a escalada ao poder em cenário interiorano de falência moral. O autor expõe as fraturas de uma América marcada por crises econômicas, preconceitos éticos e mística do sucesso. A profundidade de seu mergulho não ultrapassa o nível artesanal dos diálogos e a costura alinhavada da trama, lançando os dois personagens em ambientação que, mais do que identificá-los como perdedores, soa como realidade externa e sem paralelismo com seus sentimentos. São apenas raivosos os discursos discriminatórios do político Boss Finley, e inconvincente o telefonema da cronista de Hollywood para Alexandra na tentativa de improvável final feliz. A montagem de Gilberto Gawronski não colabora para tornar mais sustentável o texto de Williams. A direção adota linha horizontal nas interpretações, acentuando os desequilíbrios da narrativa, provocando ausência de atmosfera dramática, e reduzindo ainda mais artificiosa queda de braço a monólogos queixosos. A cenografia de Mina Quental e Ateliê na Glória dispersa, igualmente, a tensão e liquida com o intimismo. A imponência da cama espelhada e das colunas laterais, torna o cenário para as cenas paralelas, pobre e com aparência improvisada. Os figurinos de Marcelo Marques se desqualificam com o fantasioso vestido de Vera Fisher no final. Paulo César Medeiros esboça um desenho de luz com algum clima. No elenco de apoio - Bruno Dubeux, Clara Garcia, Dennis Pinheiro, Juliana Boller, Pedro Garcia Netto, Renato Krueger e Ivone Hoffmann -, Mario Borges consegue individualizar o desprezível Boss. Pierre Baitelli imprime tensão artificial a Chance, e Vera Fisher apaga qualquer resquício de chama de Alexandra, transformando-a em brasa adormecida.
 

domingo, 19 de novembro de 2017

Temporada 2017

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/11/2017)

Crítica/ “Justa”
Manifesto discursivo contra a corrupção

Newton Moreno, autor de “Justa”, busca com abrangência temática, duplicidade estilística e narrativa alegórica, metáfora cênica para o que define como peça-manifesto. A corrupção, endêmica nos plenários legislativos, se confunde com a prostituição, símbolo da hipocrisia dos costumes, impulsionada por assassinatos justiceiros. Fábula de tantas morais e crítica de faltas éticas, ambiciona o palanque indignado com a sedução da crônica policial. São tantas as intenções, que resta muito pouco de consistência. O texto é narrado, e a ação discursiva, com os diversos pontos referenciais dispersivos (mistério, notícia, protesto) em trama sem ritmo evolutivo e peso provocador.  O entrecho converge para o discurso final, alvo da aversão que se imagina ter sido provocada pela exposição descritiva das misérias da política e violência da redenção. Como o caminho até ao exaltado manifesto é pouco calçado, a chegada é inexpressiva, longe do impacto pretendido e esvaziado por falsa eloquência. A cenografia de André Cortez aponta para direção bem diferente daquela adotada por Carlos Gradim. A proposta do cenógrafo é de jogar com o tom discursivo do texto, projetando uma bancada, com vários microfones e telas para exibição de vídeos de conotação dramaticamente explícita. A ambientação sugere uma palestra cênica, tirando partido da frontalidade da ampla mesa e da interferência das exibições. O diretor ignora o cenário, com marcações em torno do móvel de movimentação aleatória e gestos de significação intrigante. O desenho do diretor acentua o caráter palavroso de rede expositiva que quer capturar indignação social e causar resposta ativa. Patina nos bons propósitos, e escorrega na inflexão. A luz de Telma Fernandes compensa a subutilização do cenário, e a trilha sonora original do Dr Morris pontua a cena. Rodolfo Vaz assume, na integralidade, o papel de narrador, proposto pelo texto. Segue, com modulação informativa e certa linearidade vocal, o roteiro de descrever. A Yara de Novaes é imposta atuação que, mais ilustra do que interpreta.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (8/11/2017)

Crítica/ “Um bonde chamado Desejo”
Obstinadas ilusões de uma Blanche vaporosa

O mais bem acabado exemplar do realismo psicológico, “Um bonde chamado Desejo” se tornou um clássico da dramaturgia de Tennessee Williams. De 1947, quando foi escrita, a 1951, quando Elia Kazan dirigiu o filme com Vivien Leigh e Marlon Brando, multiplicando-se por tantas montagens brasileiras, o texto se fixou como construção dramática inseparável da linguagem de origem. Interpretar Blanche é a oportunidade de uma atriz projetar sombras de ilusões perdidas. De um ator viver Kowalski com sensualidade agressiva. Da narrativa ser ambientada, com calor opressivo, em um cortiço durante um verão. As rubricas estão claras e a receita pronta, possível de algum tempero, mas de degustação com sabor característico. O diretor Rafael Gomes de mais esta versão, parece querer responder à pergunta: por que montar, hoje, a peça? A sua concepção cênica está em mão inversa a da limpidez fluente do autor. Anti ou pós realista, a encenação transforma sentimentos em alegoria visual, com sensações dominando o espaço físico. Desaparecem os meios tons e a contraluz, substituídos por flashes explodidos de exibição sem filtros. Tudo está exposto, nada contrastado. A cenografia de André Cortez é decisiva, na funcionalidade determinante de sua execução, do descolamento realista. Do dispositivo de madeira, emoldurado por trilho circular, os atores retiram os diversos elementos cenográficos, numa atividade incessante, algumas vezes difícil, quebrando  ritmo e atmosfera. O cenário é utilizado à exaustão, adquirindo o caráter de ação paralela, com corridas no trolley, sob os comentários musicais arrebatados. Os detalhes, tão próprios da fragilidade de Blanche, são ignorados, jogando foco intenso no que sugere quebra-luz. Rafael Gomes esgarça a trama para retirar-lhe modulações existenciais e compor painel de enfrentamento. O elenco de apoio – Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana Yazbek e Davi Novaes – desempenha com a dualidade de atuações regulares e contra-regras luxuosas, papéis que a direção conduz ao acessório. Virginia Buckowski confere alguma identidade à Stella. Eduardo Moscovis é um Stanley Kowalski equidistante e inexpressivo, com dificuldade em contracenar com uma Blanche DuBois de presença vigorosa. Maria Luisa Mendonça encarna a personagem com obstinada ilusão delirante e fúria crescente no abandono da verdade. A atriz cuida de levar a montagem à sua melhor realização.