Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (8/11/2017)
Crítica/ “Um
bonde chamado Desejo”
O mais bem acabado exemplar do realismo
psicológico, “Um bonde chamado Desejo” se tornou um clássico da dramaturgia de Tennessee Williams. De 1947, quando foi
escrita, a 1951, quando Elia Kazan dirigiu o filme com Vivien Leigh e Marlon
Brando, multiplicando-se por tantas montagens brasileiras, o texto se fixou
como construção dramática inseparável da linguagem de origem. Interpretar
Blanche é a oportunidade de uma atriz projetar sombras de ilusões perdidas. De
um ator viver Kowalski com sensualidade agressiva. Da narrativa ser ambientada,
com calor opressivo, em um cortiço durante um verão. As rubricas estão claras e
a receita pronta, possível de algum tempero, mas de degustação com sabor
característico. O diretor Rafael Gomes de mais esta versão, parece querer
responder à pergunta: por que montar, hoje, a peça? A sua concepção cênica está
em mão inversa a da limpidez fluente do autor. Anti ou pós realista, a encenação
transforma sentimentos em alegoria visual, com sensações dominando o espaço
físico. Desaparecem os meios tons e a contraluz, substituídos por flashes
explodidos de exibição sem filtros. Tudo está exposto, nada contrastado. A
cenografia de André Cortez é decisiva, na funcionalidade determinante de sua
execução, do descolamento realista. Do dispositivo de madeira, emoldurado por trilho
circular, os atores retiram os diversos elementos cenográficos, numa atividade
incessante, algumas vezes difícil, quebrando ritmo e atmosfera. O cenário é utilizado à
exaustão, adquirindo o caráter de ação paralela, com corridas no trolley, sob
os comentários musicais arrebatados. Os detalhes, tão próprios da fragilidade
de Blanche, são ignorados, jogando foco intenso no que sugere quebra-luz. Rafael
Gomes esgarça a trama para retirar-lhe modulações existenciais e compor painel
de enfrentamento. O elenco de apoio – Donizeti Mazonas, Fabricio Licursi, Nana
Yazbek e Davi Novaes – desempenha com a dualidade de atuações regulares e
contra-regras luxuosas, papéis que a direção conduz ao acessório. Virginia
Buckowski confere alguma identidade à Stella. Eduardo Moscovis é um Stanley
Kowalski equidistante e inexpressivo, com dificuldade em contracenar com uma
Blanche DuBois de presença vigorosa. Maria Luisa Mendonça encarna a personagem com
obstinada ilusão delirante e fúria crescente no abandono da verdade. A atriz
cuida de levar a montagem à sua melhor realização.