Crítica publicada em 8/12/2018 quando da
temporada paulista. “Estado de Sítio” está, atualmente, em cartaz no Teatro Ginástico.
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Imagem sombria de alegoria onírica |
O texto de Albert Camus é de 1948, escrito no
pós-guerra europeu, em que os destroços, físicos, morais e sociais, marcaram
vidas e políticas. Em “Estado de sítio”, o autor, nascido na então colônia
argelina da França, onde desenvolveu sua literatura, atravessa as fronteiras de
origem, culturas, filosofia e dramaturgias, para se fixar em alegórica Espanha
sob o franquismo. Situada numa Cádiz metafórica, ameaçada por epidemia de peste
autoritária, a narrativa transforma personagens (Peste, Morte, Nada) em
símbolos do poder opressor contra forças vitais. Ambicioso no seu alcance
crítico-intervencionista e influente na apropriação de formas lítero-teatrais,
a escrita camusiana se sitia no próprio estado referido no título. O autor não
ultrapassa a circunstância do período, conotando tempo e espaço com
significados mais incidentes do que representação da analogia. Quando os
diálogos secam o tom maniqueísta e as questões do “niilismo humanista” aparecem
com maior nitidez, ganham adensamento os traços de correspondência sem datação.
A versão de Gabriel Villela explode em imagens o imaginário
alegórico-poético do diretor mineiro. Não se trata apenas do encaixe de um
universo a outro, mas da inserção de uma assinatura reconhecida visualmente à
material permeável a essa cenografia da palavra. O enquadramento da estética de
Villela, cada vez mais filigranada, espelha em maquiagem-máscara, terrores e
medo. No figurino refinado nos detalhes de tecidos e adereços, a interpretação
de uma dramática. Na cenografia de árvores desfolhadas, a projeção da aridez
fatal de existir. Em “Boca de Ouro”, apresentado há dois anos em temporada
carioca, a exuberância ilustrativa emoldurava Nelson Rodrigues num
afresco de dourados e brilhos. Em “Peer Gynt”, há três anos em São Paulo,
revestia Henrik Ibsen de envolvência onírica. Em “Estado de sítio” recria em
Albert Camus o sombrio com frestas de luz. Imagens se repetem como
chancelas de uma linguagem que, por mais reiterada que seja, se
reinventa a cada nova montagem. A noiva, que perpassa o quadro, com sombrinha
branca, espargindo chuva de talco, já vista com variadas roupagens, impacta
como se fora inédita. A movimentação dos atores, como um quadro vivo de beleza
e grotesco, se faz coro de vozes que entoam emoções rascantes. Novas, e ainda
surpreendentes. No elenco de sintonia fina com o ritual coletivo, são
inevitáveis os destaques para Claudio Fontana (Morte), Elias Andreato (Peste),
e para Chico Carvalho (Nada), em atuação avassaladora de um cético de tudo.