Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (14/4/2018)
Crítica/ “O Rei
da Vela”
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Versão 2018 |
Na estreia de “O Rei da Vela”, há 50 anos no Teatro Oficina, o texto de Oswald de Andrade, escrito 34 anos antes, surpreendia e criava impacto político-estético no teatro de um tempo de repressão e censura. Os fundamentos antropofágicos e as liberdades modernistas que Oswald exibia em sua farsa em três atos sobre as consequências do crack de 1929 da Bolsa de Nova Iorque na burguesia cafeeira de São Paulo, era exposta, com desabrido rompimento de padrões cênicos então circulantes. O Oficina que vinha de repertório realista, de autores russos e americanos, dá uma virada que anunciava o que aconteceria depois na linha brechtiana de seus próximos espetáculos, e na linguagem dionisíaca de sua fase atual. O Brasil da década de 1960 está triturado por encenação que recorre ao Brasil da década de 1930 para demolir a hipocrisia de classe, parodiar a injustiça econômica e caricaturar comportamentos. O diretor José Celso Martinez Correa tinha a certeza de que proponha algo provocativo, inovador, insolente, que repercutiria de forma demolidora. A crítica se confessava perplexa, a intelectualidade instigada, artistas inspirados e público, confuso, mas mantendo a montagem nos palcos por mais de uma década. A publicidade nos jornais, procurava orientar as plateias, sintetizando a complexidade que perturbava os espectadores: “três estilos num só espetáculo (realismo, revista, ópera e ainda missa negra) – vida, paixão e morte de um burguês brasileiro”. Hoje, ao rever “O Rei da Vela”, o impacto não será o mesmo para um Brasil, mais ou menos, diferente. Não será, também, tão afrontoso quanto parecia aos que acusavam o golpe por estar na mira. O que pode ser visto na Cidade das Artes é a reprodução, marca a marca, cenário a cenário, música a música, o que Zé Celso criou e Helio Eicbauer desenhou. A integridade criativa está intacta, sem que se reduza ao registro histórico ou a reprodução memorialística. A cena pulsa com a mesma força viva de origem e renasce pelo rigor e técnica da dinâmica de sua invenção.
Versão 1967
É desafiante para a atual
audiência teatral, dispersiva e impaciente, penetrar em texto, longo e
discursivo, e se deixar levar por sucessão de quadros com códigos ainda não
completamente digeridos. Mas os batimentos estrondosos que estão no coração de
um corpo cênico vigoroso, espalham imagens sanguíneas que abrem os vasos
comunicantes. A abertura do segundo ato, com “Yes, nós temos bananas” cantado
por coro de um teatro de revista mambembe e na exuberância tropicalista da
cenografia, é encerrado pela citação de Olavo Bilac de que “não há país como
este”. É um clássico, como são Abelardo e Heloísa, apontados pelo autor. O
terceiro ato, o mais palavroso e com armadilhas à dispersão, tem direção
primorosa, que por sua habilidade construtiva, conquista a atenção silenciosa
dos que a assistem. O elenco, seguidor do que os atores da primeira versão
realizaram, impecavelmente, reconstitui com efeito fotográfico a excelência do
passado. Destaque para a disponibilidade de Marcelo Drummond no “tour de force”
na interpretação de Abelardo. “O Rei da Vela” 2018 comprova a permanência de uma
arte em que o efêmero se confunde com palco. Como lembrou Zé Celso ao final da
sessão de sábado, sua encenação é uma obra de arte, como seria uma pintura ou
qualquer outra manifestação mais “duradoura”. Talvez agora, “O Rei da Vela” se
confirme como valor “definitivo”. E pareça um tanto menos ruidosa ao apelar no
final que o público, “esse imenso
cadáver gangrenado” não aplauda o que
acabou de ver, sugerindo chamar bombeiros e polícia para salvar tradições e
moral.