Retrospectiva
do Ano Teatral
"Os realistas" |
Em ano contraído entre choques políticos e pulverização econômica, o teatro apostou na dignidade artística e na sobrevivência sob outros meios de produção. Nos limites do voluntarismo da realização do possível e na necessidade de manter o vigor do espaço da criação, a temporada carioca de 2016 foi mais restrita em volume de espetáculos, em variantes de propostas e na generosidade das ideias. Os palcos foram ocupados pela urgência de manter com vitalidade o que tantas crises procuram roubar em produção, tempo, densidade e público. Com tantas restrições, as vontades de afirmação da atividade se realiza através de investidas em dramas psicológicos, lembranças doloridas, revisão de corpos e gêneros e nas históricas contradições do país. Sem saber ainda como se reinventar, o teatro segue tateando futuros avanços. A cena de 2016 foi um passo: curto e hesitante.
"Vaga carne" |
Os monólogos, menos como opção formal, e mais como depoimento individual, deixaram alguns registros entre as centenas de espetáculos vistos este ano. Matheus Nachtergaele em “Processo de conscerto do desejo” mergulha nas penumbras do luto pela morte da mãe, assumindo a função quase catártica de dar contornos a sentimentos em rito cênico de comunhão. “Mamãe” é um monólogo tão pessoal quanto é real a experiência do ator Álamo Facó frente aos 100 dias que antecederam a morte da mãe, vitimada por tumor cerebral. E não será apenas o depoimento sobre um estado agônico, mas a transposição de sentimentos vivos a partir de sensações pressentidas. Em sentido contrário, a da comédia irônica, Marcos Caruso, solitário no palco em “O escândalo de Phillippe Dussaert”, traduz com verve brasileira o humor à francesa com a naturalidade que não rouba a impostação mais formal do texto e o tom agudo de sua crítica. “Hamlet – Processo de revelação”, solo de Emanuel Aragão, mostrou-se como forma exploratória de integrar a tragédia de Shakespeare ao fluxo das relações com o tempo e o teatro. A versão mais abrangente e renovada de monologo ficou com Grace Passô em “Vaga Carne”, autora, diretora, intérprete de fragmentos de palavras murmuradas no espaço escuro e vazio, que ganham a luz articuladas pela ação física. Grace contorna os limites da presença única em cena para ampliar o alcance das possibilidades do gênero.
No elenco afiado do texto afinado de “Os
realistas”, Deborah Bloch se destacou entre personagens que se tocam por suas
arestas, através de diálogos evasivos. Deborah traduz a atmosfera subjetiva em
atuação que se transforma no centro irradiador da montagem. Juliana Galdino,
como o centenário Eulálio de “Leite derramado”, se impõe, imponente e hierática
no ritual assombrado que ressoa como um brado retumbante. Caco Ciocler e Carmo
Dalla Vecchia, a dupla de atores de “Caesar – Como construir um império” sustenta o sentido trágico com desenho
corporal que serve à solenidade ritualística e justifica o furor da razão. Na
contraluz das imagens e nos murmúrios das palavras, os intérpretes completam a
beleza áspera da montagem de Roberto Alvim.
O país como imagem e a
crise como reflexo compuseram o mural rabiscado de tempos de perplexidade.
“Leite derramado”, versão cênica de Roberto Alvim do livro de Chico Buarque,
distendeu a visão de práticas políticas e sociais em encenação alegórica de
pensamento nacional moribundo. A estética
singular de Roberto Alvim cria cenas ruidosas de som e imagem de força poética
simbólica. “Nós”, direção Marcio Abreu para o Galpão, desata algumas amarras do
grupo mineiro, estabelecendo uma cena mais reveladora e ambiciosa, na tentativa
de se situar entre o “tá difícil pra todo mundo” e iluminar a “região do
escuro” de cada um. A montagem funciona como um arrastão
aos “subterrâneos gelados do eterno esperar”.
Os musicais, que há várias temporadas já se
tornaram rotina no mercado teatral carioca, em 2016 sofreram com a restrição
dos patrocínios, diminuindo em quantidade e em alguns casos, em qualidade. “Auê”,
com custo baixo e excelente nível de realização, provou que há possibilidades criativas
com outras formas de investimentos para além das financeiras. O show-teatral-performático-musical ressalta
a consistência do grupo de compositores, a competência de instrumentistas, a
habilidade de cantores e a versatilidade de atores-bailarinos. Os sete integrantes
desta barca que navega por múltiplas linguagens soltam as amarras, que poderia
prendê-los a definições, para desbravar, a partir de melodias e letras, vasto
panorama multicultural. Duda Maia orquestrou a explosão cênica de
músicos-performers que se reinventam em movimentos corporais, desafios vocais e
atuações improváveis. A apreensão do tempo, como registro e documento, determina as melhores conexões
cênicas de “Cabeça”, que em dois lados-atos percorre as 13 músicas do álbum
“Cabeça dinossauro”, dos Titãs, lançado há 30 anos. LP original e intervenções
críticas e pessoais do elenco se equalizam na montagem de Felipe
Vidal, que reproduz a totalidade das composições e seu caráter provocativo, com
impecável direção musical e alta qualidade dos músicos-atores.